sábado, 21 de maio de 2011

O Pererê e a Cinderela


Um arquétipo tão antigo quanto mesquinho povoa o imaginário coletivo: Cinderela. A versão escrita mais antiga é da China, mais de mil anos. Escritores famosos da Europa redigiram as versões mais conhecidas. Em 1950, um famoso estúdio norte-americano fez a versão cinematográfica mais famosa. Cinderela é recontada pela Loteria Federal, pelo Big Brother, pelos craques de futebol, pelo Estado, pelo programa do Luciano Huck, pelas anúncios que dizem “Consuma isso e serás feliz”, pelo vestibular e todo seu terror, pela teologia da prosperidade (ver Max Weber: "A ética protestante e o espírito do capitalimo") e, de forma mais explícita, pelo casamento showbizz do príncipe Willian, o calvo.
Cinderela: @ humilhad@ que é exaltad@! Mas graças ao apadrinhamento, ou melhor, amadrinhamento. Cinderela não abole a ordem vigente nem propõe outra forma de divisão do trabalho. A gata borralheira só quer é passar para o outro lado do muro do palácio. E por mérito (?) de um príncipe e uma fada encantados.
Cinderela simplesmente acha que não nasceu para ser pobre, mas que outras pessoas sim, afinal, seu pai era rico. As filhas da madrasta que morram, afinal, são feias. Cinderela vê como natural, por exemplo, que os animais trabalhem para ela e não vê a hora de um macho alfa tirá-la da sua condição social.
Mas, para isso, para ter o conforto de ter criados em vez de ser a subalterna, ela tem que se adequar: se comportar bem, voltar cedo do rolê e até enquadrar seu pé em um delicado sapatinho de cristal, bem delicado. Para mim, essa história de acordo com fada madrinha sempre me cheirou atrato com Mefistófeles, só mudando a roupa (ver Fausto de Goethe).
O fato é que nem todo mundo tem seu dia de princesa. Cinderela, a esperança vã na sorte, na benevolência de alguém superior, é usado para conseguir submissão há muito tempo.
Ilustração alemã do clássico Fausto, a história
do médico que vendeu alma ao demônio
Mas aqui no Brasil nasceu alguém que não se importa. Alguém que não se encaixa em sapato de cristal. Ele não quer pular pro outro lado do muro, mas abolir os muros e cercas e senzala. Saci solta os animais cativos e protege a floresta. Se não foi convidado para a festa nem tem traje de gala, ele pula e entra pela janela ou buraco de fechadura, pois ele sabe dar um jeito, se virar, exigir respeito. Estou convencido de que esse “espírito zombeteiro”, simbolizado pelo mito do Pererê, criado coletivamente aqui mesmo no Brasil, simboliza uma espécie de ímpeto revolucionário que, sim, nós temos.
Quem diria, por exemplo, que a Índia faria uma revolução anti-imperialista? Um povo pacífico, que parece tão aceitador da ordem vigente, de repente despertou ao som da dança de Shiva, destruidor de paradigmas, e fez justamente da não-violência sua arma de revolução.
Nosso bom humor, a capacidade de resistir rindo de si mesmo, nossa dignidade e atrevimento nos dá, sim, um potencial Sathyagrahi (ver Gandhi). Os antigos contam que o Saci muda de tamanho e às vezes parece ter desaparecido. Mas ele está lá. Pode virar um gigante a qualquer momento. Mesmo que haja gente muito interessada em matar os sacis dentro das pessoas desde a infância.
Saci foi construído coletivamente da amálgama de mitos indígenas, com muita influência africana adquirida nas histórias de esperança que as velhas negras contavam e, também, com o que há de mais atrevido em duendes europeus.
Mas o Saci é criança. Às vezes inocente. Se não reage, é porque está sendo enganado. Mas quando abre os olhos, ele é implacável. E vence.
O Saci (e tudo que ele representa), que esteve com Zumbi, Chico Mendes e tantos outros, vive em algum grau em todos os movimentos contra-hegemônicos não necessariamente de contestação consciente do “modo de produção” (ver Materialismo Histórico, e "crise do") vigente, onde estão incluídos desde o movimento guei, passando pelas Ecovilas, hackers anônimos pró-transparência, estudantes, coletivos de cultura independente, movimentos sociais em geral.
Semana passada ele apareceu. Na selva de pedra São Paulo, no aristocrático bairro de Higienópolis, onde um grupo de moradores havia conseguido que o governador Geraldo Alckmin cancelasse a construção de uma estação no bairro por não quererem atrair para a cercania o que uma moradora teria definido como “gente diferenciada”. Foi o suficiente para que a #gentediferenciada se unisse sem que ninguém soubesse dizer direito como começou. Como a maior parte da “gente diferenciada” tem que trabalhar durante a semana, deixaram para fazer festa no sábado.
Foto de Roberson @biosbug Miguel mostra festa da gente
diferenciada em Higienópolis, 14/5. A Polícia perguntava para
 as pessoas "Quem é o líder dessa... Disso que vocês estão
fazendo?",ao que os diferenciados respondiam, com simpatia:
"Ninguém, fique à vontade. Sejam bem-vindos!". Bom humor
é característica do que há de rebelde na cultura brasileira.
A mob foi síntese do comportamento sacisístico, pacífico, mas
não passivo.
Criada coletivamente, a mani-FESTA-ção era transmitida ao vivo, sem precisar da TV. Eram 5 mil diferenciados, de hippongas a motoboys passando drags e ciclistas que levantavam suas magrelas como estandartes de uma nova ordem a ser criada. Carnavalizada, sim, mas com consciência política (ver Bakhtin). Era gente mostrando ter orgulho de ser o que é.
Um grupo de estudantes levou uma catraca de ônibus e botaram fogo, que foi convertida em churrasqueira onde vegetarianos assaram pão de alho. Ali perto, um tiozinho de chapéu de couro nordestino carregava um cartaz dizendo “Nóis na fita!”.
Com muito bom humor, a festa sem líder, em clima de comuna (ver "Zona autônoma temporária", de Hakim Bey) não teve bandeira de partido, nem idade, nem briga, nem confronto. Quitutes e tubaínas eram compartilhados e, ao fim de toda música e brincadeira, deixaram o espaço público limpinho. Essa gente tão diferenciada quanto nosso (anti?)herói mítico mostrou que o novo pode, sim, acontecer. Basta que superemos a mesquinhez de Cinderela que nos torna burgueses de espírito bunda-mole.


Pra quem quer +

Leia também neste blog: 

sobre H. D. Thoreau pensador abolicionista estadunidense autor de "A Desobediência Civil" 

O velho de barba branca (e bandeira preta)

sobre Piotr Kropotkin
sobre Mahatma Gandhi (altamente influenciado por Thoreau, Tolstoy e Jesus)

Uma Revolução (ou reforminha) para chamar de sua Parte 1 / Parte 2/ Parte 3

Sobre a evolução (mudanças e permanências) dos sistemas de dominação e clientelismo brasileiros. Dos latifúndios agrários aos latifúndios eletromagnéticos.


Ebooks:
Ebook de Graça: Fausto --- J.W. Goethe

No arquivo Viagem no Tempo
Salve o saci! Salve a cultura Brasileira! (17/10/2010)
artigo conta a história da formação do mito e divulga o Dia do Saci

Na Pegada do Saci
poesia que fiz em homenagem a esse valente perneta protetor da floresta e da liberdade

Indico
"É o Saci Urbano" blog do personagem criado pelo artista de rua paulistano Thiago Vaz


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