sábado, 19 de novembro de 2011

O terrível "bom momento"

Manifestantes do Ocupa Sampa recebem coronel da PM com beijos e abraços. A revolução que precisamos é, sobretudo, comportamental, abandonar o ódio e a sede de consumo desenfreada para a adoção de uma cultura de paz

"E não vos conformeis com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus". Romanos 12:2

Vem chegando o Natal, os shoppings e casas das cidades brasileiras se enchem de lâmpadas e apelos para convencer as pessoas a consumirem, consumirem, consumirem. Um velhinho supostamente bom é pago para dar colo às crianças. Elas fazem fila por um abraço do ator. Ele pergunta logo de cara: "O que você quer ganhar de Natal". O cretino não diz a verdade, fala que os duendes estão trabalhando nisso. Não há duendes no Polo Norte. O mais próximo disso seriam crianças semiescravas trancadas numa fábrica em algum lugar do Sudeste asiático. É claro que a criança no colo do velhinho não vai perguntar se os desnutridos meninos que trabalham na mineração dos materiais necessários à fabricação de componentes eletrônicos na África foram bons garotos durante o ano.
Foto de 2010 mostra despejo de tribo Guarani Kaiowá no
MatoGrosso do Sulcom ajuda de tropas da Polícia Militar;
Na última sexta-feira a mesma etnia sofreu um ataque
de pistoleiros; A perseguição a esse grupo ocorre por uma
razão simples: os fazendeiros, que também tem sua cota
de políticos, decidiram que são donos das terras que esse
povo ocupa há séculos; hoje é pior que no tempo dos
bandeirantes
Não, não precisamos dessas lâmpadas chinesas. É para mantê-las acesas que precisamos construir uma usina que vai alagar a Amazônia e desalojar 40 mil pessoas (entre indígenas e ribeirinhos)? Os presépios já estão montados, são os viadutos sob os quais se abrigam os deuses-meninos cheirando tíner.
Mundo louco! Na sexta-feira, pistoleiros entraram no acampamento dos guarani kaiowá, meteram uma bala na cabeça do cacique. Mataram uma mulher e um curumim e sequestraram três jovens indígenas. O acampamento Pueblito Kue, MS, fica entre fazendas de criação de gado e plantio de soja que querem garfar a terra indígena. O governo do partido que há uma década defendia o fim do latifúndio se aliou a essa gente. E está tudo bem. Não tem nem que passar na TV. Assistimos a tudo de braços cruzados como os alemães, que achavam lindo a postura do Partido Nazista no fim dos anos 30, começo dos 40.
Roseana Sarney participa de inauguração de ampliação
da planta da Alumar (Alumínio Maranhão), consorcio
de alumínio formado por três grandes corporações
extrangeiras; apenas 10% da liga produzida ali fica no
Brasil. O lucro vai todo para fora do Brasil; aqui ficam o
subemprego (Alumar é campeã em acidentes de trabalho
e em má remuneração de seus operários) e os custos
ecológicos e sociais da construção de usinas que supram
a enorme demanda por energia elétrica dessa indústria de
transformação; Belo Monte no Pará está sendo construída
para isso: tornar o aluminio "brasileiro" mais competitivo
(mais barato, devido ao aumento da oferta de energia) que
o alumínio chinês
Ah, sim, mas teremos Copa do Mundo! Ah, sim, mas teremos Olimpíadas! Ah, sim, mas teremos uma fábrica de I-pads. Ah, sim, mas agora parte da população come carne uma vez a mais na semana. Carne! Carne! Carne! Carne, responsável por 70% do desmatamento da Amazônia.
Até agora ninguém ainda me respondeu quem matou José Cláudio, líder castanheiro paraense morto no dia em que os deputados aprovaram o desmonte do Código Florestal. Ah, Brasil! Brasil, o país do futuro. Brasil, a nova potência. Brasil, aquele que vai salvar o capitalismo mundial. Brasil, o novo império. Desenvolvimento! Desenvolvimento! Desenvolvimento!
A que preço? O sangue dos mais humildes e o sangue da floresta.
Ao lado do deputado Joaquim Haickel (PMDB),
o bilionário indiano Ratan Tata participa de
jantar na casa de Fernando Sarney em 2007;
um dos objetivos do principal acionista da Alumar
era cobrar celeridade na construção de Belo Monte;
é a prova cabal de que nosso país está na mão dos
grandes proprietários de terra e das corporações
internacionais
E aqueles que acampam em Porto Alegre, São Paulo, Salvador, Rio, Natal e Salvador são tão invisibilizados pela mídia quanto os indígenas. Quando mostrados aparecem como hippies, rebeldes sem causa, filhinhos de papai que não têm do que reclamar. Não há motivo para os brasileiros se levantarem. Está tudo bem. Penso nos índios e moradores de rua mortos sob nosso silêncio e lembro mais uma vez de Brecht: “Primeiro levaram os negros./Mas não me importei com isso./Eu não era negro./Em seguida levaram alguns operários./Mas não me importei com isso./Eu também não era operário./Depois prenderam os miseráveis./Mas não me importei com isso./Porque eu não sou miserável./Depois agarraram uns desempregados./Mas como tenho meu emprego, também não me importei./Agora estão me levando./Mas já é tarde./Como eu não me importei com ninguém./Ninguém se importa comigo”.
Não há outro caminho que não a rebelião. Um novo tipo de rebelião. Uma rebelião que se faz no dia a dia, não se omitindo ante a injustiça, se importando com o outro como se o mal que fazem a outros o fizessem a nós.
Índias xinguanas fazem dança tradicional; 
mais de 40 mil pessoass terão suas  terras
destruídas para a construção da usina de Belo
Monte; a grande mídia, aliada das classes
dominantes do país mostra uma falsa realidade,
em que esses povos simplesmente não existem

A rebelião não violenta inclui uma nova cultura, de ver o outro como igual e também de viver com maior fugralidade, consumir menos e, sobretudo, boicotar a “nosso” próprio país, pois nosso Estado está (e sempre esteve) em guerra contra seu próprio povo. Consumir menos energia, menos alumínio, menos carne. Rebelião não violenta inclui ligar para os senadores e deixar bem claro o que é que queremos ( http://www.senado.gov.br/senadores/ ). A rebelião não violenta inclui ir para a rua não só para protestar, mas para cuidar de nossos irmãos que estão na rua. A rebelião não violenta inclui desobedecer: desobedecer leis injustas, os apelos de consumo, o ímpeto de violência; desobedecer as cobranças de Imposto de Renda no começo do ano. A rebelião não violenta inclui ligar para o gerente do banco e dizer que sacará toda a grana (e não pagará empréstimos, se houver) caso a instituição financeira não desista de participar da Construção de Belo Monte, prova última de que nosso Estado não nos representa nem ouve ninguém além dos magnatas como Lakshmi Mittal e Ratan Tata(quarto e quinto homens mais ricos do mundo, que atuam no setor de alumínio, principal interessado na construção da barragem) e . O Bradesco já desistiu por medo de arranhar sua imagem, falta BB, CEF, Basa, Itaú-Unibanco, HSBC, Santander, Votorantim, BNE e BES.





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Manifesto Ocupa Sampa

Clipe Força da Paz
Entenda o que é o projeto Belo Monte, prova cabal de que vivemos sob a Ditadura do Capital disfarçada de Democracia

terça-feira, 15 de novembro de 2011

A Rua do Muro

Jornal do Povo - 15/10/2011

Óleo sobre tela de Leon Tantillo mostra a cidadela de Nova Amsterdã (atual Nova York) em meados do século XVII. Ao fundo vê-se a muralha que deu nome à Wall Street

No século XVII a América do Norte era um território selvagem, em disputa pelas potências mercantilistas. Os indígenas, verdadeiros donos da terra, eram caçados, mas resistiam bravamente contra franceses, espanhóis, ingleses e holandeses. Esses últimos fundaram um povoado ao qual chamaram Nova Amsterdã num interessante porto natural que fica no nordeste dos atuais Estados Unidos. Em 1640 contava com quase 300 habitantes, contingente insuficiente para resistir às investidas dos índios de Lenape. A solução foi construir uma muralha no melhor (pior) estilo medieval ao redor do povoado. Além de não deixar os índios entrarem, o muro servia para não deixar os escravos saírem. O muro de madeira e terra era impenetrável para as lanças e flechas dos nativos, mas não seria o suficiente para conter os ingleses, que chegaram pelo mar com armas de fogo tão poderosas ou mais que a dos mercadores de Nova Amsterdã. Expulsos os holandeses, os ingleses criaram uma nova vila em cima e ao redor da cidadela e rebatizaram o lugar com o nome de Nova Iorque.

"A Queda de Nova Amsterdã" do artista J.L.G. Ferris
Junto à muralha, abriram uma importante via que desde aquela época tinha por vocação ser centro de trocas e negociações, a Rua do Muro, em inglês Wall Street. Como os indígenas já tinham sido pacificados (isso é, expulsos e exterminados), o muro foi derrubado e a rua ficou e ao longo dos séculos foi palco de importantes acontecimentos históricos.
No fim do século XVIII, quando os descendentes dos colonos resolveram se libertar dos grilhões (e dos impostos, principalmente) pagos à coroa britânica, fundando a independente confederação a qual chamaram Estados Unidos da América (que à época eram apenas 13 colônias na costa leste do atual império), Nova Iorque se tornou a primeira capital do jovem e inspirador país. Na Rua do Muro, número 26, George Washington (o tiozinho de peruca na nota de um dólar) toma posse como primeiro presidente dos EUA em 1789.
Wall Street era o centro da política e dos negócios do novo país. Ali, no meio da rua mesmo, os homens se juntavam para combinar novas empreitadas e investimentos conjuntos, além de vender e comprar participações em empresas de negócios diversos. Era uma efervescência. Três anos depois da posse de Washington, de baixo de uma árvore que ficava em frente ao número 68 da Rua do Muro, 24 homens de negócios resolveram organizar as coisas por ali, redigindo tarifas e regras para os negócios de parcelas de empresas. Nascia a Bolsa de Valores de Nova Iorque, que em pouco tempo ganharia um edifício sede na mesma rua, onde até hoje é o endereço preferido dos principais bancos americanos.
George Washington toma posse como primeiro]
presidente dos EUA em Wall Street
Os estadunidenses construíram posteriormente uma outra cidade, Washington, para ser a sede do seu governo, mas, de fato, Wall Street nunca deixou de ser a sede do poder daquele país. As decisões de deputados, senadores, juízes e presidentes em Washington sempre estiveram submetidas aos interesses dos bancos e dos capitalistas mais ricos da famosa rua de Nova Iorque. O sistema político permitiu que o poder econômico permanecesse sendo o poder de fato, tanto via financiamento de campanha, quanto por meio de lobby, chantagem e especulação.
Outra fonte de poder de Wall Street sempre foi a manipulação da informação. Até hoje, o jornal mais influente no mundo é o The Wall Street Journal, fundado pelos jornalistas Charles Dow, Eduard Jones e Charles Bergstresser. Os três provaram ser muito mais homens de negócios do que jornalistas, pois no mundo dos negócios que se tornava cada vez mais complicado, abstrato e especulativo, informação é poder. Foram os três que criaram o índice Dow Jones, que calcula a oscilação média do valor das ações das 30 maiores empresas negociadas na Rua do Muro, que até hoje determina como será o dia (e a vida) de boa parte do mundo que vive com medo do mercado, um dragão imaginário que não deveria ter o poder de devorar o destino de africanos, gregos, brasileiros e japoneses. A fertilidade da terra, a chuva, o trabalho das pessoas, as relações sociais, as necessidades reais das pessoas e a capacidade de cada povo se organizar para supri-las deveriam ser mais importantes do que o que diz Dow Jones.
Muitos ficaram ricos e muitos mais perderam tudo em Wall Street.
Em choque, americanos vão para a frente da Bolsa
de Valores de Nova York acompanhar o pregão de 21
de outubro de 1929
Nos anos 20 os americanos se empolgaram tanto com o lucro fácil advindo da valorização constante das ações que tomaram um grande tombo. Muitos se endividaram junto a bancos para comprar ações, vender com lucro, pagar o empréstimo e ainda assim sair ganhando. Mas numa quinta-feira do outono de 1929, quando a artificialidade dos preços atingiu seu ápice e começou a cair vertiginosamente, ações que valiam 30 dólares no começo do dia, valiam três no fim do pregão. De uma hora para outra, milionários se viram falidos e endividados. Muitos se suicidaram no mesmo dia do início do período conhecido como Grande Depressão, da qual os EUA só se recuperariam graças à II Guerra Mundial. A farra de Wall Street recomeçou.
Em 2011, americanos ocuparam Wall Street
para questionar a ordem vigente
Nos fim dos anos 2000, a máscara da especulação começou a rachar novamente e o país começou a entrar em recessão. Hoje, há milhares de americanos acampados nas cercanias da bolsa com a firme intenção de desmontar esse sistema. Não sabemos para onde vai o movimento nem o que será da bolsa inaugurada sob uma árvore. A história está em marcha, mas uma mudança significativa de postura, crença e comportamento já é verificada. E sem isso talvez o muro etéreo do capital não se sustente.

domingo, 13 de novembro de 2011

#OcupaSampa Questionamento à sanidade em lembranças recortadas

(Jornal do Povo 12/11/2011)
Ocupa Sampa atrai dezenas de crianças de rua. As "autoridades" paulistas e paulistanas permanecem omissas à falta de escola, saúde e familia dessa população e ainda por cima é conivente com o tráfico de drogas para que acontece há menos de 100 metros da Prefeitura. Os "indignados" tentam fazer o que podem, inclusive denunciar a venda de drogas a menores, mas a PM e a GCM só aparecem para reprimir manifestação política e impedir que pisemos na grama.


“A loucura é que é sinal de sanidade. Por que num mundo doente como esse, como é possível alguém ficar bem, continuar sua vida normalmente? Se acostumar a isso é que é doentio. Nesse sentido, a loucura é o estado normal do ser humano de nosso tempo", me tranquiliza Cleberson, um irmão de Ocupa Sampa, psicólogo e amigo. Lembro do Cazuza: “Eu vou pagar a conta do analista”. E eu paguei há um tempo e decidi só ouvi-los se fosse para ouvir alguém sincero, que não estivesse interessado no meu dinheiro nem em resolver-me como um caso, um robô para reparar e botar de volta na linha de produção. Coisas como “seja um bom trabalhador” ou “pare de fumar, tome drogas caras e sintéticas” não me parecem conselhos de amigo. “Continue ‘louco’”, sim.
“To indo”, me diz Alemão, que estava morando na rua, mais um cara cuja vida foi devastada pelo sistema e pelo crack. Parou uns dias de usar a pedra, teve uma recaída, sofreu com isso; depois, com a ajuda de umas meninas da ocupação, arranjou uma vaga gratuita numa clínica de reabilitação. Ele estava indo com as próprias pernas e um sorriso no rosto. Eu digo a ele o quanto torço, confio na capacidade dele e o quanto sentirei saudades. Uma vez, estava frio no Anhangabaú e eu começava a ficar doente. Alemão me deu suas luvas, mesmo sendo muito tendo em vista o pouco que tinha. Ele preferia ficar acordado a noite toda, então ficava junto à fogueira e prescindia de luvas, mas não abria mão de cuidar do sono noturno daqueles que também cuidavam dele durante o dia.
A Prefeitura e o Estado de São Paulo querem começar um programa de internação compulsória que mais lembra o fascismo, recolhendo à força moradores de rua e drogadictos para “limpar” antes que os gringos vejam a verdade na Copa do Mundo. Moradores de rua desaparecem muito frequentemente em São Paulo. Geralmente, a última vez que foram vistos estavam sendo incomodados por alguma força de repressão.
Loucura é que um dia eu fui dar aula no gramado central do Vale, que hoje é uma praça suja e seca, mas um dia foi Mata Atlântica e teve um rio no meio, que hoje corre cheio de merda, canalizado sob o cimento. “Aula de História R$ 0,00”, diz a placa que apoio numa árvore. Há tempos descobri que os garotos que pulam o muro da escola são mais interessantes e inteligentes que os que sequer pensam em fugir desses presídios chamados escolas convencionais. Descalço, estou em círculo com gente biodiversa espiritual, cultural e socialmente. Numa aula em que todos participam é bom ouvir o índio, o skatista, a cigana, o bêbado, o menino da periferia que sabe fazer rimas como gente grande, o lixeiro, o sociólogo, o estudante de Direito que tem mais amor à Justiça do que às leis. É proibido pisar na grama, por isso chega a Guarda Civil Metropolitana de São Paulo (GCM) com seus agentes armados e pisando pesado com botas militares.
Vão destruir o Xingu, aprovar mudanças suicidas no Código Florestal, e pisar na grama é que é crime ambiental. Tão proibido quanto plantar árvores, estender faixas, construir banheiros secos e ecológicos, acender fogueiras. Um punk pergunta “por quê?” e é ameaçado com spray de pimenta. Não podemos pintar “amarelinha” no chão e nos dizem para não dar alimento às crianças de rua que se aproximam do grupo acampado há quase um mês.
Denunciamos a infeliz que vende drogas às crianças e a GCM continua prevaricando. Na verdade, parece gostar que eles cheirem tíner e comecem a brigar no acampamento ou a roubar barracas para desestabilizar o movimento. O Estado, instrumento de poder do capitalismo, não quer que as acolhamos, não lhes oferece nada de dignidade, prevarica ante a situação das crianças, mas aparece para impedir que sentemos sob uma árvore para proteger a grama, que “é patrimônio público”, como justificam os GCMs. Diante disso, não tenho dúvidas de que insano é o sistema; insano é se conformar com o cotidiano, com crianças que jamais tiveram família nem fruta no pé usando drogas do lado da Prefeitura da cidade mais rica da América Latina.
Membros do Anonymous queimam revista Veja, que
manipula informação para fazer parecer que o movimento
contra todo o Sistema político e econômico é meramente
apenas contra o governo Dilma
Essa semana uma galera deu um baita trabalho construindo as estruturas para as telhas fotovoltaicas inventadas por Charles, o “Charlie Brown”, inventor e revolucionário. Na mesma semana aumentou o diálogo e o intercâmbio com as famílias das novas ocupações de prédios abandonados e com os universitários que querem a desmilitarização da sociedade. Os alunos da USP passaram em marcha sobre o Viaduto do Chá e aplaudiram o Ocupa Sampa aqui embaixo. Uma menina levanta o cartaz “Fora a PM do campus”. Eu grito: “Fora a USP do campus! Fora a PM do mundo”.
Não, não é fácil. Como sempre digo: não dá para fazer uma revolução europeia no Brasil. Na europa não há crack na boca de crianças de 6 anos e existem fontes com água limpa para as pessoas beberem. Lá não há tantas pessoas traumatizadas pela cadeia, nem pela violência da miséria.
Mesmo assim, há quem diga que o Brasil vai bem e é exemplo de democracia, que não há motivos para sonhar com revolução, nem querer mais participação das pessoas na vida do país, nem propor profundas mudanças culturais na maneira como as pessoas lidam umas com as outras e com a Terra e o local em que vivem.
Água cai do céu; comida nasce da terra; destruímos tudo isso para criar essa civilização de morte surreal e ainda nos achamos os seres mais espertos da natureza. Me desculpe, mas acho que natural e sano é mesmo se rebelar.


Aldeia rebelde em Sampabilônia

(Jornal do Povo 5/11/2011)
Sexta-feira, 3 de outubro de 2011, é o 21º dia de acampada. O Centro da maior cidade da América do Sul é cada vez mais nosso. O boicote da mídia hegemônica (que omite e/ou distorce) me dá nojo. As multidões que passam como zumbis de um lado para o outro sem perceber os absurdos do cotidiano me dão pena. Claro que aqui seria mais difícil. Não se faz uma revolução europeia na América do Sul. Aqui, onde sempre estivemos na bota do sistema, a maioria se acostumou com o peso e a sujeira dela. Tristemente aceita-se tudo com naturalidade. Tudo parece tão longe, tão distante. No Anhangabaú, não. Está tudo muito perto. “Tâmo junto e misturado”. Em volta da fogueira, tocando violão ou fazendo assembleia para definir os rumos do movimento.
O rapper Gog participa do Ocupa Sampa
Grafite. Malabares. Sabotagens poéticas. Meditação. Nossas armas são simples, mas têm vencido a Polícia Metropolitana, que parece não ter o que fazer a não ser nos azucrinar como criança chata. Viraram motivo de piada. Só rindo pra não morrer de raiva.
Como bem disse o p(r)o(f)eta Gill Scott-Heron: “A revolução não será televisionada”. Para piorar as coisas, não temos tantos computadores, paggers, celulares com internet e banda larga quanto gostaríamos. Por uma diferença simples, aqui não é a Europa. O acampamento cresce com sem-teto, estudantes, hippies, professores, punks, artistas, desempregados, intelectuais, camelôs despejados pelo Kassab, egressos, religiosos, idealistas em geral continuam a chegar. A cada dia fica mais claro não se trata de um protesto digital como muitos pensam. Não é só discussão de teoria ou preferências políticas. É sobre luta social. Mendigos, índios e a maioria da população brasileira não têm notebooks nem muito menos banda larga móvel. A limitação das comunicações atrasa o processo de integração com outros focos de resistência na cidade e com o mundo. Por isso, mesmo maior que as primeiras acampadas espanholas e estadunidenses, continuamos sendo ignorados por boa parte da população. É... Aqui o sistema é mais perverso e os mecanismos de controle do pensamento mais eficazes. Mas não desistimos, é tudo a seu tempo. Não dá para esconder uma coisa dessas por muito tempo.
População de rua adere cada vez mais ao Ocupa Sampa
É a realidade. Aqui é a rua. Tem a Força da Verdade (satyagraha). Estamos do lado da Prefeitura com a maior concentração de moradores de rua de São Paulo, com uma biblioteca, aulas abertas com intelectuais brasileiros, banheiro ecológico, cozinha comunitária, cinema sob o Viaduto do Chá, apresentações artísticas, rodas de conversa, atividades lúdicas, megafones, faixas. Como nos ignorar para sempre? Não vai passar tão cedo na TV nada de bom que sair do Anhangabaú ou da Cinelândia (Rio) ou de qualquer outra acampada. Mas é preciso resistir, mesmo que as doações de alimento começaram a diminuir quando a população da acampada começou a se tornar majoritariamente de pessoas que normalmente não têm mesmo comida e já moram na rua. Acho que hoje esses irmãos (assim que nos chamamos mutuamente) que vivem na rua, os últimos, os fudidos do sistema, já são quase 30% de nós. Enquanto isso, boa parte da molecada de classe média “revolucionária de sofá” que estava no início não aguentou o choque de realidade nem quis trabalhar para construir algo novo, já saiu fora. Por sorte, chegam reforços valorosos: ontem, por exemplo, chegou um cara da USP com um projeto de um gerador elétrico movido à pedalada para fazer com ferro velho, o que deve aumentar nossa capacidade de transmitir conteúdo pela web, já que mais computadores poderão ficar ligados.
Os militantes de partidos políticos que provavelmente pretendiam cooptar o movimento ou tentar direcioná-lo foram os primeiros a sair fora quando viram que todos eram de fato iguais e importantes. “Nossos sonhos não cabem nas suas urnas”, diz a faixa que resume que não queremos reforminhas de mentiras nem trocar os políticos, simplesmente não acreditamos mais no sistema que não nos representa ou sequer nos ouve. Então não há disputa. Todos somos indivíduos. Todos queremos o bem comum. Não há um poder interno em disputa, não há o que conquistar ou quem vencer nas assembleias: por isso os manobristas partidários saíram fora. Nosso processo deliberativo é um outro tipo de democracia em que todos buscam o bem comum. As minorias não são vencidas pelo voto, pois sempre que derrotados numa “votação” têm a chance de expor por que discordam dessa ou daquela proposta, ajudando a ver outros lados da questão, então a assembleia tenta achar uma solução que resolva os problemas apontados pelos “vencidos”, pois o objetivo é que todos vençam juntos. Essa postura é revolucionária: não ver quem pensa diferente como inimigo, mas como companheiro que colabora na busca da verdade. O fato de não haver classe social nem diferenciação na distribuição de trabalho nem de alimento nem de nada ajuda nisso. Na sociedade oficial é diferente, cria segregação para nos desunir. Os 99%, se divididos, não são 99%. Não fosse o Ocupa Sampa, que quer virar Ocupa Brasil no dia 11/11/11, não teria conhecido e adentrado o mundo da rua, dos invisibilizados, e continuaria admirando gente branca que adora teorizar sobre sociedade, mas na hora da rua não se mexe para mudá-la.


VIDEO
O professor Pardal xamânico do Acampa Sampa