Esse texto eu publiquei na coluna Viagem no Tempo do dia 20/11/2010, Dia da Consciência Negra, no Jornal do Povo (Rio Grande do Sul). Fala de partes da História que não são muito tocadas no "roteiro" das escolas brasileiras. |
Reprodução de imagens do livro Zumbi dos Palmares, feita pelo artista dos quadrinhos Wamberto Nicomedes mostra resistência quilombola em Palmares |
A jovem princesa Aquautune era uma valorosa guerreira. Em 1665, quando os portugueses entraram em guerra contra seu pai, o rei do Congo, ela quis ir para o campo de batalha e comandou 10 mil homens. A batalha foi dura. Não deixe o preconceito fazer pensar que os africanos lutavam nus com lanças de madeira. Não, eles tinham proteções corporais e armas de metal. Os arqueiros congoleses eram a artilharia mais poderosa dos exércitos africano, mas os portugueses vinham com as mais poderosas armas de fogo da época e com mercenários norte-americanos e brasileiros. Manikongo, o soberano, foi morto e sua filha, a princesa Aquautune, foi escravizada e levada ao Brasil para trabalhar na produção de açúcar.
Quadro Princesa Africana, do belga Floris Jespers, mostra belezaa da princesa do Congo, Aqualtune |
Uma princesa guerreira escrava? Isso não poderia durar muito tempo, ela tinha um espírito forte. Fugiu e foi viver na Serra da Barriga, no atual estado das Alagoas. Naquela serra outros negros fugidos formavam aldeias, os mocambos ou quilombos. Eram comunidades autônomas, onde os moradores plantavam, caçavam, pescavam. Num ambiente geográfico bastante diferente daquele que conheciam, tiveram que aprender a viver na mata. Conheciam a metalurgia, e isso é importante quando existe demanda por arados e lâminas. Começavam um verdadeiro modelo alternativo de civilização. Um modelo sustentável.
Os vários mocambos da Serra se uniram numa espécie de confederação quilombola, que ficou conhecida como o Quilombo dos Palmares. Palmares chegou a ocupar uma área maior que a de Portugal, tinha núcleos populacionais de até 8 mil habitantes. A população total de Palmares variava bastante, mas pode ter chegado a mais de 40 mil pessoas em determinadas épocas.
Na época de Aquautune, os portugueses em território brasileiro enfrentavam os holandeses, que queriam tomar o Nordeste. A instabilidade da época fragilizou a segurança dos engenhos e as fugas de escravos estavam em alta. Palmares crescia. Os holandeses tentaram, tentaram, tentaram... Mas os liderados da princesa resistiram.
Depois de finalmente botarem os holandeses pra correr, os portugueses partiram pra cima do reino de Palmares. Foram várias as incursões portuguesas. A violência era enorme. Numa das invasões, um neto da princesa de 6 anos de idade, nascido no quilombo, é raptado e dado ao padre Antônio Melo, que o batiza com o nome de Francisco. Até os 15 anos ele foi coroinha, aprendeu o português e o latim, estudou. Na Bíblia leu história de homens que lutavam contra a escravidão de seu povo.
Cartaz de filme do cineasta Cacá Diegues, sobre o antecessor de Zumbi |
Ele tinha comida, casa... Mas algo o incomodava, algo que o fazia não se sentir livre. Pode ter sido a cor da sua pele, que continuaria negra, portanto, alvo de descriminação, mesmo que estivesse abrigado pelos brancos e pela mais forte de suas instituições. Ou então eram os gritos dos ancestrais, gritando de dentro das veias, chamando-o à luta. Então ele fugiu...
Voltou a Palmares, onde seu tio, Ganga Zumba, acabara de emergir como líder. Francisco tinha 15 anos quando voltou a usar seu nome original: Zumbi. Guerreiro valoroso, era admirado pela coragem, pela capacidade enquanto estrategista e pela habilidade na luta, a capoeira primitiva. Zumba fortalecera o quilombo, era muito bom nas táticas de guerrilha, o que levou os portugueses a tentarem um acordo. As autoridades brancas ofereceram liberdade para os negros de Palmares, desde que eles reconhecessem a autoridade real e se mudassem para um outro lugar, um assentamento onde poderiam viver em paz.
Os portugueses haviam desistido de recuperar os escravos de Palmares para reestruturar o negócio do açúcar (abalado pelas invasões holandesas). Sabiam que Palmares havia se tornado um símbolo, que poderia inspirar outros negros, questionar o sistema de colonização monocultor escravista. A paz com Palmares para os portugueses era uma espécie de “vão-se os anéis, ficam os dedos”. Até mesmo brancos, judeus principalmente, começavam a fugir para o quilombo.
Zumba aceita. Toma a paz como uma vitória. A comunidade se divide, mas a grande maioria queria continuar lutando. Por que só eles poderiam ser livres? Zumbi era um dos que queria continuar a luta, continuar entrando nas fazendas e libertando mais e mais negros. Era a consciência negra.
Capa de versão em quadrinhos sobre o guerreiro negro lançado em 2002 pela Editora Fluminense, com roteiro de Antonio Krisnas e desenhos de Allan Alex |
Zumba morre envenenado (provavelmente por opositores, mas cogita-se também o suicídio, o que é menos provável). Os líderes dos mocambos de Palmares aclamam Zumbi como o novo líder.
A guerra dos Palmares continua. Os portugueses e jagunços não dão conta, então chamam um dos assassinos mais famosos da América Portuguesa, o bandeirante Domingos Jorge Velho, um mercenário que fez a vida aprisionando índios e pilhando povoados. A luta foi dura. Os negros do quilombo eram muito mais preparados militarmente que os índios que o assassino paulista havia enfrentado.
Tortura e chantagem. Só assim Domingos poderia por as mãos em Zumbi. A promessa de liberdade em troca da informação sobre o esconderijo de Zumbi fez um quilombola entregar seu líder. Ele resistiu até o último instante. Mesmo emboscado, como um leão africano, lutou. Morreu como um homem livre no dia 20 de novembro de 1695. Foi decaptado e teve a cabeça exposta em praça pública para desencorajar os negros.
Não deu certo, Palmares ainda resistiu, mas sem um líder com a inteligência e determinação de Zumbi não pode articular a luta contra a desproporção bélica dos portugueses e mercenários paulistas, truculentos, que deixavam um rastro de fumaça e sangue... Mas Zumbi continua inspirando o povo negro e os oprimidos em geral. Seu exemplo ensina a não se conformar com pouco, nem com paz aparente, mas a buscar a liberdade plena.
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