sexta-feira, 6 de maio de 2011

O rei está pelado

Nem quando, em 1977, os Sex Pistols gravaram “Deus salve a rainha/ Ela não é um ser humano/ Seu regime fascista te transforma em retardado/ Uma bomba H potencial” para marcar os 25 anos do reinado de Elizabeth II, nem qualquer outro punk muito, muito ousado, jamais conseguiu constranger a família real como a visita que o rei George V e sua família receberam em meados de novembro de 1931 para um chá. Usava uma tanga cobrindo o “básico”, um xale indiano para cobrir os ombros e sandálias velhas.
Caneca em comemoração à coroação de George V e Mary
 da Inglaterra em 1910. 21 anos depois da manufatura dessa
 caneca, o casal real receberia um nativo de uma das
colônias do império para um chá que entraria para a História
“Gandhi, onde estão suas calças?”. Ele sorri gentilmente e responde na entrada do palácio, dando mais atenção à pergunta da criança do que à imprensa: “O rei já está usando roupa o bastante para nós dois”. Quem tentaria impor regra de vestuário? Desde que voltara a viver na Índia, 16 anos antes, Gandhi abandonara o terno de advogado e as roupas ocidentais para se fazer igual ao mais humilde mendigo de seu povo. Ele estava, então, aceitando gentilmente o convite para o chá no palácio de Buckingham, mas sem fazer distinção, sem se vestir de maneira diferente daquela que ele costumava andar para estar com os dalits ou cuidar dos leprosos.
Foi gentil e simpático com toda a família. Como de costume, preferiu o leite de cabra e escolheu beber no pires, como os indianos faziam. O público, outros convidados e o rei certamente esperavam que Gandhi fosse aproveitar a visita para falar com o rei sobre a independência da Índia, cobrar alguma coisa ou algo parecido. George V certamente esperava que o assunto fosse levado pelo peculiar visitante da corte. A resposta do rei, sem dúvida, estava preparada (um comunicado de fachada para acalmar as coisas para a opinião pública? Reformas? Um acordo meia-boca?). Mas não. Gandhi não tocou no assunto que todos esperavam que ele fosse tocar.
Foi ao chá com o rei, educado e respeitoso, como faria na casa de qualquer homem. Ele próprio foi a mensagem. Sua visita a Londres desnudou a monarquia.
Nos anos anteriores, sua vida e seu comportamento, além de suas palavras em discursos, conversas e jornaizinhos que fazia, vinham conscientizando o povo indiano a opor-se às injustiças do Império Britânico. A Satyagraha (poder/força da verdade) foi posta em prática em 1928, quando em Bardoli toda a população parou de pagar impostos quando os dominadores ingleses elevaram as taxas em 22%. A Polícia prendeu centenas, confiscou terras, foi violenta contra o movimento. Mas simplesmente não adiantava. A população não pagava impostos, permanecia firme, mas não revidava a violência com violência. Não era possível prender todo mundo. A imagem do governo só se desgastava mais a cada retaliação. Ao fim, todos os presos foram libertados, as terras devolvidas e o aumento de impostos cancelado.
Gandhi lidera a famosa "Marcha do Sal" em 1930;
Quando ele desobedece a lei e sibolicamente toca
o sal à beira mar, a revolução sathiagrahi começa
Mas as vitórias da Satyagraha não paravam por aí, a mensagem da transformação comportamental se espalhava. Gandhi encorajava os indianos a boicotarem os produtos britânicos, de modo especial o álcool e outras drogas. O fim da discriminação de casta, bem como a igualdade para as mulheres eram valores que se difundiam. Ele pregava também a conciliação e amizade entre hindus e muçulmanos, todos indianos. Gandhi dizia que para vencer os inimigos, o homem teria que vencer primeiro aqueles que estavam dentro de si.
Em 1930, os indianos já se vestiam novamente como indianos. O trabalho nos teares manuais tradicionais inseriu a mulher no movimento político. Ao mesmo tempo, a negação da moda ocidental e da industrialização capitalista dava orgulho próprio aos indianos. Chegava a hora de a evolução ética, posta em prática na forma de transgressão comportamental do povo, destruir o pior e mais aprisionante dos vícios: a obediência a leis injustas.
A lei símbolo a ser atacada era a Lei do Sal, que garantia o monopólio da produção de sal a empresas inglesas, o que prejudicava justamente a população mais pobre que anteriormente fazia a extração. Gandhi foi caminhar. Anunciou que faria sal e começou uma caminhada de 200 km até a costa. Logo as pessoas caminhando, sem pressa e com panelas na mão, eram dezenas, centenas, milhares, centenas de milhares. No dia em que o Mahatma (grande alma, como ficou conhecido) chegou à beira do oceano, multidões repetiram o gesto de pegar água no mar e esperar o sol secar tudo, deixando apenas o sal.
Ele e mais 60 mil foram presos. Ninguém resistiu à prisão ou revidou a agressão da Polícia. O estado teve de libertar os subversivos e abolir as leis sálicas ou haveria uma tragédia humanitária sem precedentes dentro e fora das prisões, tamanha quantidade de mortes haveria se o homem que a essa altura o mundo considerava santo e sua multidão de irmãos continuassem, sem violência, fazendo sal e greve de fome durante tantos dias.
Por isso, o tiozinho de tanga na casa do trisavô do Willian (o rapaz que casou sexta-feira de veludo vermelho, cheio de adornos de ouro) não precisava falar sobre a independência da Índia, porque ela já estava acontecendo, era questão de tempo.
Vendo um velhinho seminu bebendo leite de cabra no pires no Palácio de Buckingham, George V viu quem é que manda de verdade.

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Pra quem quer +













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6 comentários:

  1. Minha nossa!... que matéria! Mas é do caramba! Leandro, per favore, manda expedir minha carteirinha, agora sou tua fá em primeiro grau!

    Besos estupefatos!

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  2. Texto incrível!

    O poder do ser sobrepujando o poder do ter, no nosso mundo isso é raro de se ver, bom ter nos brindado com tal relato.

    Beijos!

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  3. Excelente matéria; nos leva a refletir sobre a essência, e notar que a verdadeira fortuna está na força moral. A famosa resistência pacífica empreendida por Gandhi superou a estratégia bélica britânica. Não é sem razão o espanto da poeta brasileira Carmem Regina.
    Abraços, Leandro.

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  4. Pensando nos 30 milhões de indianos que morreram de fome durante a dominação britânica, foi mesmo muita coragem do Gandhi protestar fazendo greve de fome.

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  5. Poxa, pessoal! obrigadão aí pelos comentários todos.
    Fico até ruborizado, Carmem, de receber elogios assim! Muito obrigado, poeta jardineira.
    beijão

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  6. Olha... Isto aqui nem é um blog, devia-se poder
    encaderná-lo e colocá-lo no acervo de documentos da História da Humanidade.

    Vou repassar o link para todos os meus amigos.

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