domingo, 30 de maio de 2010

A curiosa história da nossa comida (pte2)


Publicado no Jornal do Povo (Cachoeira do Sul - Rio Grande do Sul) na edição de 29/05/2010

Leandro Cruz
Semana passada começamos a refletir sobre a história da relação da espécie humana com os ecossistemas dos quais fazemos e fizemos parte, com foco sobre a maneira como extraímos nosso alimento da natureza. Mesmo com a estrutura física de herbívoro (formato da arcada dentária, intestino longo, enzimas para digerir alimentos de origem vegetal), nossos ancestrais se submeteram a comer carne por uma única razão: sobrevivência.

Os primeiros hominídeos a experimentarem carne foram os Homo ergaster, desaparecidos há 250 mil anos. Eles comiam frutas, ovos e folhas. Mas em períodos de fome, começaram a comer carniça, restos das presas de grandes felinos.

Quando a comida escasseava ou ficava difícil vagar por aí por causa dos nossos predadores, a maneira de conseguir certos nutrientes era comer carniça, mesmo que isso fizesse mal em outros aspectos. Em condições extremas, as espécies humanas se mostraram capazes de tudo para tentar sobreviver. Em situações mais extremas ainda, até canibalismo cometeram.

Depois desenvolvemos técnicas de caça e domesticamos o fogo. Uma vez que a carne não é um alimento naturalmente feito para o homem, assá-la facilita um pouco a digestão. Matar animais foi fundamental para que os Homo sapiens (a nossa raça de homem) sobrevivessem a um período glacial, já que os animais abatidos forneciam pele e alimento.

Mas então o tempo do gelo acabou. O homem aprendeu a cultivar o solo, descobrindo que não precisava mais comer cadáver nem ter que sair procurando frutas por aí. Somos mesmo muito espertos e conseguimos descobrir mais ou menos como a vida funcionava e começamos a plantar. Não dava para ser um final feliz? Nossa espécie descobrir que a Terra dá em abundância o que a gente precisa (bastando adicionar água) não parece ser uma das nossas descobertas mais importantes? Tipo... O fim, para nós, do principal problema enfrentado pelos seres vivos: buscar alimento.

Mas alguns povos não tinham terras férteis. Tinham que andar. A melhor maneira de carregar alimento, pelo deserto por exemplo, é que esse alimento vá andando junto com a caravana. O pastoreio é uma boa solução.

Mas sabe que já descobriram como tornar a maior parte das terras estéreis em solo fértil? E tem lugar que não tem isso ainda por falta de vontade política, mas os egípcios antigos e civilizações pré-colombianas já descobriram há um tempão como irrigar a terra. Aos poucos, quase todos os povos da Terra se sedentarizaram.

Atrás de pimenta, descobriram terra

Mas vejam só os portugueses. Parece piada, mas eles continuaram a comer animais mortos mesmo tendo desenvolvido tanta tecnologia. Comer carne (principalmente quando ainda não havia geladeira e a coisa estragava e fedia mais rápido) é uma forçação de barra tão grande contra o organismo que os caras fizeram o maior fuá pra conseguir trazer especiarias (pimentas e outros temperos) das Índias para conseguir engolir aquilo. O bom disso é que (sem querer?) descobriram, em 1500, a terra que hoje chamamos de Brasil. Uma terra grande onde “se plantando tudo dá”, como escreveria ao rei o famoso Pero Vaz de Caminha (que morreu antes de voltar de sua viagem atrás de pimenta).

Aquela terra dava para plantar comida pra caramba para acabar com a fome do mundo, que poderia viver tranquilo, em harmonia, de barriga cheia, buscando progresso de maneira racional e justa. Mas nããão! Escravizaram pessoas, destruíram a vegetação natural e esgotaram o solo.

Encurtando a história: hoje um quarto do território nacional é usado na pecuária. Já acabou com os Pampas, o Cerrado, o Pantanal e agora invade a Amazônia, onde hoje tem mais boi que gente. Muito espaço usado para produzir pouco alimento para poucos. Além disso, no ano passado, o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) divulgou estudo que aponta que metade das emissões de gases de efeito estufa no Brasil deve-se à pecuária. Além disso, em 2007, a FAO – órgão das Nações Unidas para a agricultura e a alimentação mundial – alertou que no planeta cerca de 35% a 40% das emissões de metano vêm dos puns das vacas. O metano é 21 vezes mais prejudicial que o gás carbônico (CO2).

Além de a produção de carne gastar 14,7 vezes mais energia do que a produção de vegetais, ainda tem o problema da água. Para produzir um único quilo de carne são gastos 15.500 litros de água (o que a vaca bebe mais o quanto de água é gasto para produzir seu alimento: pasto e cereais). Enquanto que para produzir um quilo de soja gasta-se 1,8 mil litros; um quilo de arroz, 2 mil litros. Sem falar na poluição que a quantidade de fezes leva para os lençóis freáticos. Aí a água já sai da mina com coliformes fecais.

Diante disso, parece que vivemos um momento decisivo na história da humanidade. Se um dia tivemos que começar a comer carne para sobreviver, hoje é hora de deixarmos de comer ou reduzir radicalmente o consumo semanal. A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere a ingestão MÁXIMA diária de 42,85 gramas de carne vermelha por pessoa, isto é, 300 gramas por semana, que é o que o organismo aguenta “malemá”. Enquanto isso, o IBGE alerta que em média o brasileiro come mais de 100 gramas/dia. O resto vira pelota de gordura no sangue, radicais livres e um montão de fezes. Resumindo: todo esse impacto ambiental para, no fim das contas, produzir cocô e aumentar o risco de câncer e doenças vasculares.

Bom, melhor nem falar dos hormônios e de outras substâncias químicas que injetam no gado e a gente absorve ao comer...



sábado, 22 de maio de 2010

A curiosa história da nossa comida (pte 1)

Publicado em Jornal do Povo, dia 22/05/2010
Leandro Cruz

Há seis milhões de anos, nossos ancestrais curtiam comer umas raízes, umas frutinhas, umas folhas. Esses hominídeos conseguiam tirar todos os nutrientes de que precisavam da natureza sem precisar matar. O problema é que havia uns bichos bem maiores do que nós naquela época, e na dieta deles, nós éramos o prato principal. Depois de um tempo, quando já éramos um grupinho maior, não dava para ficar andando pra lá e pra cá toda hora atrás de frutas. Afinal, o mundo era bastante perigoso.

Adaptação. Este é o segredo da sobrevivência no mundo. O mundo muda e a espécie que não se adapta é extinta invariavelmente. Não existe progresso ou grau de competência. O fato é que se a espécie existe é porque ela está adaptada. Quando ela perde essa capacidade, babau! Essa mudança de ambiente pode acontecer quando, por exemplo, um meteoro gigante cai na terra e levanta poeira ou quando uma espécie resolve usar suas penas para enfeitar chapéus ou ainda quando o seu alimento fica escasso.

O ser humano tem uma capacidade de adaptação tremenda. Não depende exclusivamente do acaso das mutações e da seleção natural de genes. Se precisamos de asas, nós mesmos as construímos. Se precisa de velocidade, não espera que seus descendentes desenvolvam pernas mais velozes; em vez disso, criamos veículos. Naquele tempo remoto, usamos nosso cérebro para aprender a caçar. Na carne dos animais, já encontrávamos uma série de nutrientes e proteínas concentradas. Nosso organismo, entretanto, não está preparado naturalmente para a digestão desse tipo de alimento (basta olhar nosso estômago, nossa arcada dentária, nosso intestino).

Mas a gente era um macaco pelado bem inteligente. Logo, logo a gente domesticou o fogo. Assando, queimando bem, ficava mais fácil de digerir. Mas, amiguinhos, de repente a gente entrou numa fria. Ou melhor: numa era glacial. A vegetação ficou coberta de neve e as baixas temperaturas teriam acabado com a humanidade se ela, mais uma vez, não usasse a inteligência para conseguir alimentos e peles para barracas e roupas. Acredito que a ponta de lança de pedra polida foi a maior invenção da humanidade. Se ela não houvesse sido criada, teríamos fatalmente deixado de existir.

Mas o sol voltou a brilhar. A era do gelo chegou ao fim. A terra voltou a dar seus frutos em abundância. Sim! Comida de verdade! Não precisávamos mais da degeneração de comer carne de outras espécies. Não precisaríamos nos culpar por termos comido cadáveres nos tempos da neve, afinal, era questão de sobrevivência. Mas agora não! Boa parte de nossos predadores havia deixado de existir e nós descobrimos como cultivar nossas próprias verduras e frutas.

Era sem dúvida um mundo mais saudável, mais bonito, mais gostoso, mais fácil de se viver. Estávamos em casa. Sério. Há duas experiências a se fazer para testar a teoria de que a gente era mais feliz nos campos férteis:

Primeira delas: tranque uma criança numa sala com uma maçã e um coelhinho. Observe se a criança vai comer a maçã e brincar com o coelho ou se ela vai caçar, matar e comer o coelho e depois brincar com a maçã.

Segunda: vá a um matadouro de bois. Sinta o cheiro, escute o barulho, olhe as cores. Depois vá a um pomar ou a uma horta e faça o mesmo processo sensorial: sentir o perfume, ouvir o som ambiente, contemplar a beleza. Em qual dos dois ambientes seu coração e seu corpo se sentiram melhor?

Naquele mundo pós-Era Glacial e pós-Revolução Agrícola, cara, dava pra gente ter construído uma História da Humanidade bem feliz e bonita. Tinha água, tinha terra fértil, tinha ar fresco. Não tinha tigre-dente-de-sabre querendo comer a gente como no passado, nem superbactérias querendo comer a gente como hoje. E além de tudo, a gente era o bicho mais esperto do planeta, capaz de criar coisas novas, fazer arte. Como a gente, cultivando a terra, estava na mais perfeita adaptação ao meio, não precisávamos mais nos preocupar com traçar estratégias para pegar mamutes. Nossa inteligência estava livre, com tempo para se divertir ou tentar responder certas perguntas como “quem sou?”, “de onde vim?”, “para onde vou?”. Enfim, o tipo de pergunta que você só pode se dar ao luxo de fazer depois de respondida a questão: “O que vou comer amanhã?” (continua).

quinta-feira, 13 de maio de 2010

O chorinho do século!


assessoria de imprensa da Sassanid
Chorinho, capoeira, samba de roda, samba de raiz, samba rock, MPB, “drum and bossa”, serão mais de três séculos de música brasileira de altíssima qualidade num único lugar. É a festa “Que choro é esse?”, que a república Espaço Cultural Sassanid (@sassanid_bauru), de Bauru, prepara para o público universitário no próximo sábado (15 de maio) e contará com a presença de artistas de altíssimo nível a partir das 15 horas e 15 minutos.
Do Conservatório Musical de Tatuí, vem a atração principal, o Grupo Choro Fino, que responderão à pergunta proposta pelo nome da festa. Além de clássicos do chorinho de Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Armandinho (compositor e intérprete do vídeo ao lado, o grupo de músicos apresenta os grandes sucessos dos mestres do samba como Ismael Silva, Noel, Ataulfo Alves, Cartola, Adoniram Barbosa, Zé Ketti, entre outros.
Outro ícone da defesa da cultura brasileira é bastante aguardado: Mestre Napa, que vem de Ribeirão Preto para jogar capoeira com seus discípulos. Acontece que os discípulos dele são ninguém menos que professores e mestres da Casa da Capoeira de Bauru, que já são feras nessa dança e arte marcial criada pelos escravos.

Depois de relembrar as origens, a república Espaço Cultural Sassanid, apresenta uma banda independente que representa o presente da boa música brasileira, a Filha Solteira ( http://www.myspace.com/filhasolteira ). Misturando cavaquinho e guitarra, pandeiro e bateria num ritmo dançante difícil de rotular. “Nosso repertório é focado em composições próprias. Como todos nós temos muitas influências, o que sai é um som miscigenado e com muitos sabores diferentes mas carregado de brasilidade”, explica Thiago Zanetti, guitarrista, bandolinista e vocalista da Filha Solteira, que existe desde a edição de 2007 do Festival de MPB de Ilha Solteira (daí o nome). Thiago explica que os integrantes da banda se conheceram “em uma roda se violão, pandeiro e pinga às margens do rio Paraná”.
A banda começou a carreira tocando em festas de república e hoje viaja por diversas cidades se apresentando em festivais e bares de rock independente. Cada vez mais conhecida no estado de São Paulo a banda vem a Bauru matar a saudade de suas origens universitárias.
A festa continua ainda com discotecagem de música brasileira e vai até a noite com muita animação e cerveja.

A república redonda
Sassanid, república sede do “Que choro é esse?” foi criada pelo DJ Renato Sostena (@djrenatosostena ) e pelo professor de História e colunista Leandro Cruz , o “Tiozão” (www.viagemnotempo.com.br @leandrojacruz), que se conheceram na Unesp, onde estudam Comunicação Social. A ideia era fazer da república um espaço de produção e difusão cultural. Juntaram-se a meninos e meninas estudantes de biologia, artes plásticas, design e psicologia que compartilham do mesmo pensamento.
A república Sassanid, que ficou conhecida após ganhar em 2009 o concurso República Redonda, da Skol, fica na Rua Capitão Gomes Duarte, quadra 15, onde é possível adquirir os convites antecipados. As entradas para o evento também podem ser encontradas no Bar Ubaiano e na livraria Verso e Prosa, que fica próxima à cantina da FEB, na Unesp.

sábado, 8 de maio de 2010

A verdade dos Bobos



Em meio a essa recente (e divertidíssima) polêmica que tem rolado na internet e na TV (uma picuinha CQC X Legendários) sobre a suposta existência de dois tipos de humor, um do bem, outro do mal, resolvi republicar aqui no blog o artigo da coluna Viagem no Tempo, publicado originalmente no Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul-RS. É um texto sobre os sarcásticos "bobos da corte", que tinham um papel político importantíssimo em sua época. São as origens do tal "humor do mal", que em termos de resultado se mostra mais benéfico que o covarde e pouco comprometido "humor do bem".
Leandro Cruz, historiador e professor



Em 1999, um escândalo político na pequena monarquia de Tonga, no Pacífico, fez Jesse Bogdonoff ser destituído de seu cargo. Era o fim de uma profissão milenar. Jesse era bobo da corte.

Reis, imperadores e nobres em geral, desde o Império Romano Bizantino, sempre gostaram de ter em seus castelos um profissional encarregado de fazê-lo rir. Cambalhotas, piadas, mímica, música e acrobacia eram alguns dos truques que os bobos, também chamados de truões, bufos, bufões ou curingas, usavam em seu oficio de agradar à corte.

Mas nem todos os bobos eram da corte. Havia também os bobos do povo, artistas de cidades e também os itinerantes, que viajavam pela Europa em grupo. Companhias que, de feudo em feudo, de burgo em burgo, levavam sua magia, seu teatro, suas palhaçadas. Às vezes esses palhaços viajavam com o circo.

Ah... O circo! Imagine que você vive na Idade Média, seu mundinho é limitado, você nunca viu na TV ou nos livros imagens de elefantes ou leões. De repente, você ouve uma música ao longe e uma caravana vem chegando com homens comendo fogo, criaturas gigantescas de pele cinza e, é claro, bufões de rosto pintado e roupas coloridas virando piruetas e fazendo graça. Mágico, não?

Mas os bobos da corte tinham seu charme especial. Não por conviverem com os nobres, mas por poderem se opor a eles livremente.

Bufos do povo não podiam fazer o que bem entendessem. Se um truão “de rua” falasse mal do rei, certamente teria cortada a sua cabeça, com chapéu de guiso e tudo. Mas os bobos da corte tinham carta branca: podiam criticar, zombar da nobreza diante da própria nobreza. De certa forma, acabavam sendo porta-vozes do povo, pois pelo humor criticavam as cobranças abusivas de impostos ou o que quer que fosse. Invejável direito de ser insolente!

Exemplo clássico disso é Triboulet, cujo nome verdadeiro era Nicolau Ferriol, da corte de Luiz XII e Francisco I, da França. Triboulet, a exemplo da maioria dos bobos, era defeituoso. Tinha corcunda e microcefalia. Uma pessoa com microcefalia tem a cabeça mais ou menos igual a do Shrek, isto é, mesmo com a mandíbula normalmente larga, tem a parte de cima da cabeça (o coco propriamente dito) com uma circunferência bem pequena. O feioso e engraçado bobo certa vez zombou de um fidalgo empurrando-o de uma pontezinha em um rio lamacento. A vítima jurou Triboulet de morte, que correu para se colocar sob a proteção do rei Francisco, que lhe garantiu: “Se ele ou qualquer outro te fizer mal, um quarto de hora depois estará enforcado”. A isso Triboulet, que era bobo mas não era idiota, pediu: “Meu rei, faça-me esse favor completo. Mande enforcá-lo um quarto de hora ANTES de me fazer mal”.

Mas até os reis eram alvos de chacotas. Mesmo assim, nunca um bobo foi morto por isso. O bobo podia tudo. A feiura era uma de suas credenciais para o escárnio irrestrito. Francisco I convidava Triboulet para as reuniões do conselho, pois ele não precisava ter medo de contrariar ninguém, criticar e zombar de ninguém. Assim, com a chacota de um deformado, o conselho ponderava sobre diversos assuntos.

Havia até mestres de bufonaria, como Michel Le Vernoy, que ensinava bobos de tudo quanto é castelo a fazerem graças e malabarismos.

Alguns bobos ficaram tão famosos que acabaram sendo eternizados na literatura, como Dom Bibas, da corte de Dom Henrique, no finalzinho do século XI, na formação de Portugal. Bibas tornou-se personagem principal de “O Bobo” de Alexandre Herculano. Shakespeare também faz referência a bobos em suas peças.

Na negra Idade Média, o colorido espalhafatoso dos loucos bobos era um sinal de luz e humanidade. Lamentavelmente, hoje as maiores palhaçadas (sem graça, por sinal) são cometidas pelos próprios governantes. É importante que o humor seja usado como arma civilizatória, instrumento político de denúncia, que com ironia, sarcasmo e coragem contribuam para uma sociedade mais justa.

credito das imagens
1 - "The Court Jester" de Tim Shumate
2 - Jester - Kevin Middleton
3 - Mônica Iozzi, integrante do programa humoristíco CQC (TV Bandeirantes), que recentemente, com muita coragem e bom humor (a exemplo dos bobos da corte medievais) foi a Brasília pressionar o congresso pela aprovação do projeto Ficha Limpa