“O Artesão do Armamento” é uma das poucas que eu sei de cor. Nem mesmo as poesias que eu próprio escrevo se conservam inteiras na minha memória. Mas não é só por isso que eu sempre recito “O Artesão do Armamento” em todo sarau, fogueira, ou mega-fone aberto que por aí nesse ano em que parte das pessoas começou a redescobrir o valor e sentido das praças, das fogueiras e da poesia, de modo marcante nas Ocupações horizontais, orgânicas e autônomas (sem domínio de partidos, empresas ou organizações) que tenho visitado nos últimos meses. Acontece que essa poesia diz tudo que eu tenho a provocar.
Não sou eu quem determina o destino do mundo.
O poeta, ator e dramaturgo polonês Karol Wojtyla ao lado de sua canoa a remo; o artista e filósofo amava a natureza e os acampamentos |
Não sou eu quem começa as guerras.
Apenas sigo o meu caminho. Faço o meu trabalho.
Nada faço de errado.
Mas não sei.
E essa é a questão,
que sempre me atormenta.
Não quem determina,
e no entanto nada faço de mal.
Faço girar parafusos pequeninos com os meus dedos,
fabricando componentes de armas
que nos ameaçam a todos.
E ainda assim não sou eu quem determina
o destino que aparece diante de nós.
Eu poderia criar outro destino,
tornando o mundo seguro para todos aqueles
que anseiam viver a sua vida.
E então eu saberia
a razão sagrada,
o significado brilhante
da nossa existência.
Ninguém então poderia destruir-nos
com as suas ações
ou iludir-nos
com as suas palavras.
O mundo que eu ajudo a fazer
não é um mundo bom.
No entanto eu não sou mau.
E não fui eu que o inventei.
Mas será isso suficiente?
A poesia foi escrita na Polônia, durante a ocupação nazista, nos anos 30, por um rapaz que fazia teatro subversivo, underground, arte marginal, subversiva. Karol Wojtyla escrevia peças com temas bíblicos, numa sociedade em que a religiosidade era uma característica cultural forte. Mas o personagem título da peça “Davi”, por exemplo, não é só um pastor judeu que virou rei, mas a própria pequena e subestimada Polônia vencendo o gigante Golias, a dominação alemã. E “Jó” não era só um mito anticotestamentário sobre um cara superpaciente, mas, mais uma vez, símbolo da Polônia que não perdia a fé e a determinação mesmo perdendo tudo.
Oficiais da Gestapo (polícia política nazista) dão "enquadro" em cidadãos alemães |
O Teatro Rapisódico, como chamavam esse movimento cênico de contracultura, não usava figurino nem cenário. Por isso, podia ser apresentado em qualquer lugar: salas de aula, igrejas, praças. E quando chegavam agentes da Gestapo (polícia política nazista) podiam dissimular, dispersar sem dar bandeira. Atualmente, nos grupos anticapitalistas e de defesa do meio ambiente, algumas flash mobs ou ações diretas de terrorismo poético (ver também: Hakim Bey) tem agido dessa maneira.
Karol conheceu os abusos e o autoritarismo do capitalismo de Estado com a ocupação de seu país pela Alemanha Nazista e também os abusos e o autoritarismo sofridos por seu país depois que esse passou a orbitar o imperialismo socialista da União Soviética. Ele se opôs ao autoritarismo e à violência étnicas e sociais que conheceu.
MUDANÇAS NO CÓDIGO FLORESTAL |
Mas ele não conheceu de fato, de sentir na carne, a violência da América Latina, do Brasil e dos povos de toda periferia de lugares que sofrem os abusos e o autoritarismo do Capitalismo Liberal. Certamente Karol, vulgo João Paulo II, esteve mal informado acerca desses povo na maior parte do tempo em que interpretou seu papel mais famoso (de 1978 até 2005, quando de sua morte). A mídia ocidental, os arapongas da CIA e a Opus Dei contavam que por aqui o mundo era livre, as coisas eram justas. Além disso, mentiam para o papa (que nos visitou algumas vezes, mas nunca morou aqui) que aqueles que lutavam por justiça, pelos direitos humanos, pela vida e pela liberdade seriam como espiões russos, conspiradores que desejavam instaurar no Brasil uma tirania comunista.
Estou convencido de que nos últimos anos de sua vida, de modo especial após o Jubileu e o 11 de setembro, Karol se tornou um crítico da civilização ocidental capitalista industrializada, naquele momento já globalizada, onde se tornava cada vez mais nítida a sua violência, injustiça e desalinhamento completo com a mensagem crística que sua Igreja diz se propor a guardar.
“A questão que se levanta é dramática: sobre que fundamentos devemos edificar a nova era histórica, que está a nascer das grandiosas transformações do século XX? É suficiente confiar na revolução tecnológica, hoje em acto, que parece respeitar unicamente os critérios da produtividade e da eficácia, sem fazer referência à dimensão espiritual do indivíduo ou a quaisquer valores éticos universalmente compartilhados? É justo contentar-se com respostas provisórias aos problemas de fundo, abandonando a vida aos impulsos do instinto, às sensações efémeras ou aos entusiasmos passageiros? Esta interrogação volta a ressoar: sobre que fundamentos e que certezas deveremos edificar as nossas vidas e a existência da comunidade a que pertencemos?” disse em 2002 a jovens do mundo inteiro em sua última viagem às Américas no encontro ecumênico Jornada Mundial da Juventude.
Hoje no Brasil se orquestra a destruição do Planeta e da vida em nome do progresso (no modelo século XX). O genocídio indígena pavoroso (tal qual o genocídio judeu e de ciganos, que Karol viu) está em andamento em nome da criação de gado e da construção da Usina de Belo Monte. Mais de 60 dos recursos hídricos (rios) estão ameaçados (e portanto a vida das pessoas) pelos interesses de um pequeno grupo de latifundiários que querem aprovar o Novo Código Florestal. Como esses políticos se dizem católicos, e mostram tremendo furor ao afirmar isso durante períodos eleitorais e na hora de defender a violência contra minorias seuais, deveriam, no mínimo, ser excomungados por Roma, que deveria se atentar para o que hoje é verdadeiramente imoral.
Karol Wojtyla "A questão que se levanta é dramática: sobre que fundamentos devemos edificar a nova era histórica, que está a nascer das grandiosas transformações do século XX?" |
A CNBB se declarou contra Belo Monte e está no Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, no entanto não tem promovido quase nenhum debate nas paróquias para ajudar a informar as pessoas sobre o Código Florestal e a barragem.
Sem ninguém, nem nenhuma instituição que de fato esteja comprometida com a luta contra a injustiça social e pelas floresta, só nos resta agir como artistas subversivos ao estilo Karol Woytyla nos anos 30 e rezar por um milagre.
http://www.youtube.com/watch?v=1RgJS-HraGQ
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