segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Brasil, lado B

Ocupa Sampa, após 40 dias no Anhangabaú, mudou-se para
 Praça do Ciclista, na Av. Paulista
A primeira coisa é que eu me envergonho de andar por rodovias que tenham nome de bandeirantes. Sinto-me envergonhado de ver monumentos em honra a esses caras no estado em que nasci. Faz-me suar frio a testa de indignação ao ver a imagem de um bandeirante armado no brasão da Polícia Militar paulista e no da Guarda Civil Metropolitana da capital do Estado. Não tem nada de honroso isso. Não há nada de valoroso nos bandeirantes que os faça merecer tamanha reverência. Não há do que se orgulhar. Bandeirante é assassino. Bandeirante é ladrão. Bandeirante é estuprador. Bandeirante é destruidor da floresta. Bandeirante é sanguinário. Bandeirante mente na hora de contar a história.
Guardas Civis Metropolitanis de São Paulo se
recusam cada vez mais a andar com seu distintivo
de identificação; No braço direito vê-se a imagem
do bandeirante Borba Gato
E o bandeirantismo está em moda, na moda em todo o Brasil. Como não contamos a verdadeira história do Brasil para as crianças, o índio parece ainda não ter alma para a multidão calada. Penso se em vez de uma aldeia Guarani Kaiowá fosse o Leblon, Alphaville ou Moinhos de Vento (lar de ricos brancos no Rio, Sampa e Poá) que tivesse sido atacado por um bando de 42 pistoleiros... E se o corpo que permanece desaparecido fosse entre os olhos de um líder político branco, um senador ruralista, por exemplo, em vez do cacique Nisio? E se em vez do Xingu, quisessem construir a terceira maior hidrelétrica do mundo no Rio Paraíba, no interior de São Paulo, deixando submersos para sempre a Basílica de Aparecida e os locais de peregrinação de devotos do Frei Galvão (que dizem ser o primeiro santo brasileiro, mas houve muitos antes dele, sobretudo antes de Cabral)? Mas não... para a maioria, o índio não tem alma. Índio tá longe, lá no passado, como quase seres míticos ou animais extintos. A história dos vencidos não é nunca contada.
Anhanguera um dos maiores genocidas da História é
representado por estátua na frente do parque Trianon (SP);
 Na Alemanha, por exemplo, não há mais estátuas de Hitler
pelas ruas; aqui os bandeirantes de mármore e bronze
ainda  podem servir de alvos para pichadores e demais
artistas interventores urbanos
Penso na biologia. Se em vez de amontoadas às dezenas em salas com iluminação artificial, vendo um chato desenhar órgãos de plantas em paredes negras, as crianças pudessem aprender sobre a vida onde ela acontece: na natureza. Se ao redor do fogo, ouvindo Histórias e contando sonhos, as crianças aprendessem que aquele fogo é toda a energia e calor que a árvore que forneceu a lenha armazenou do sol. Elas poderiam saber que em tupi, fogo e estrela são a mesma palavra. Talvez elas sacassem que essa tal de fotossíntese é importante, aliás, é vital. Talvez não deixassem um bando de velhos gordos decidirem o futuro das florestas sozinhos no Senado.
Por isso esse ano eu resolvi viajar um pouco e registrar a história do lado que ela geralmente não é contada: o lado da resistência, e não a versão hegemônica. Sei que muitos leitores podem preferir quando falo de personagens magníficos de tempos passados, conte sobre costumes estranhos de povos longínquos, ou narre aventuras de outras civilizações. Mas... bem, tenho que pensar no meu colega historiador do futuro e contar o que tenho visto. Falar sobre os quilombos de nosso tempo. Há grandes homens (e mulheres) no nosso tempo também, a maioria deles não é conhecida, uns moram com os pais, outros em repúblicas, outros em florestas, outros nas ruas.
O apoio efetivo ao Santuário dos Pajés (território Fulni-ô)
aumenta rapidamente em Brasilia nos últimos meses;
Para defender a floresta e o espaço tradicional dos indígenas,
hoje já há mais de 200 apoiadores que se mobilizam quando
necessário para impedir desmatamentos por parte das
empreiteiras que querem tomar o terreno com apoio do
Governo do DF; na foto, PM dá apoio a ação ilegal de
empreiteiras e detém dezenas de manifestantes que
usavam o próprio corpo e tentavam deter o avanço
dos tratores com correntes sobre o cerrado,
Em Brasília, por exemplo, há jovens que se acorrentam a árvores para salvar o cerrado e o último território indígena do Planalto Central. Esses meninos e meninas defendem a terra que será compartilhada pelos filhos daqueles que os perseguem ou desencorajam. Vi em São Paulo gente deixando o conforto de seus lares para ir morar na rua com mendigos com câmeras na mão, filmando e divulgando para o mundo os desrespeitos aos direitos humanos cometidos pela GCM. Tenho visto pessoas indo morar no mato. Gente propondo novas formas de organização. Gente adquirindo novos comportamentos com relação a diversão, construção, alimentação e tratamento de resíduos. Vejo índios saindo de seus edens para ir à “babilônia” dizer à civilização “vocês estão errados. Assim nos matarão e matarão a si mesmos no futuro”. É uma resistência que sempre existiu desde Iperoig, desde Palmares, desde Chico Mendes. Uma resistência que ainda existe, como uma pequena semente adormecida que vai eclodir em algum momento. Bem que poderia ser agora, enquanto os rios ainda correm. Ou talvez será depois de um colapso (seja da economia seja do meio ambiente) em que teremos obrigatoriamente de mudar de vida. Mas é bom saber que eles existem, apesar de invisibilizados pelos contadores oficiais da história, acreditam e propõem um mundo diferente.


Contagem Regressiva
JP 26/11/2011
Santxiê Tapuya (de cocar com penas azuis), líder espiritual da comunidade Fulni-ô "Santuário dos Pajés"
Começa a contagem regressiva para a assinatura da sentença de morte das florestas ou o despertar.
Volto para o Planalto Central depois de 40 dias no Ocupa Sampa no Vale do Anhangabaú. Missão: a) ajudar a barrar o desmonte ruralista do Código Florestal; b) dar apoio aos caciques xinguanos Raoni Caiapó e Megaron Txucarramãe (que tinham uma audiência com o Ministro da Justiça); c) estar presente e atuante na tentativa de evitar a tragédia final na terra indígena fulni-ô “Santuário dos pajés”, a última terra indígena do DF. A decisão deve sair dia 29, mesmo dia da votação do código.
Donquixotismo, perda de tempo, loucura... Ouço esse tipo de coisa o tempo todo. Sei que os tratores dos ruralistas, as armas das forças de repressão, os muros dos palácios da capital onde pequenos grupos aristocráticos decidem as coisas, o culto ao dinheiro em nossa sociedade são forças tremendas e eu não passo dar de um professor de História viajando sem muito dinheiro no bolso. Mas e daí? Não vou me abster. Podem dizer que sou obstinado ou radical, mas talvez só assim se combata o radicalismo dos gananciosos. Sei que as próximas semanas terão impacto nos próximos séculos para a humanidade e a vida no planeta como um todo. Vai fazer diferença se nossos filhos terão água para beber, rio para brincar, se conhecerão tantas espécies de aves e peixes. Mas vejo que somos muitos e muitas Quixotes; pouquíssimos mesmos são os oligarcas gananciosos que querem isso. O grande problema não é o número de canalhas, mas a grande multidão calada de covardes que assistem a tudo apaticamente sem fazer nada.
Não bastasse desmatar (inclusive espécies protegidas) em área
indígena em estudo, a constrututora Brasal estourou um cano
de esgoto enquanto cavava um buraco; a nojeira contaminou
solo e lençol freático
Chego ao santuário e vejo que muita coisa mudou em três meses, uma área enorme da terra indígena (onde antes viviam seriemas, tucanos e tatus) hoje é pura terra arrasada, tratores de empreiteiras trabalham a todo vapor e a Funai segue prevaricando e adiando a demarcação. Não bastasse isso, a empreiteira Brasal (do empresário Osório Adriano - pesquisem e boicotem todas as empresas dele, inclui a distruibuição da Coca Cola no DF) estourou um cano de esgoto enquanto cavava um buraco onde será estacionamento do Bairro Setor Noroeste (o mais caro da história de Brasília), criando uma piscina de cocô a contaminar o solo e os lençóis freáticos. Na terra arrasada, sem nada, viaturas da PM do DF ficam paradas o tempo todo, como se fossem segurança particular dos grileiros (e dentre eles estão Daniel Dantas, Paulo Octávio, Arruda e mais uma corja).
Exército Insurgente de Palhaços, grupo artístico/político do DF
Triste chegar à aldeia e ver a escolinha vazia, abandonada, pois mulheres e crianças tiveram que deixar a área por segurança. O pajé Santxiê, o homem que conhece a cura para quase todas as doenças com o poder das plantas, tem os olhos tristes. Estava com saudade desse velho sábio, meu coração sangra por encontrá-lo assim.
Durmo no santuário e me regenero da viagem e da violência da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, graças à força da natureza. Sigo para a “Praça dos três podreiras” pela manhã e me encontro com o Exército Revolucionário de Palhaços, armados com bom humor, buzinas e narizes vermelhos. Marchamos até o Congresso e "todas" as forças de repressão nos incomodam no caminho, do Exército aos seguranças da Presidência, sobretudo quando passamos em frente ao Planalto (só os dragões da Independência ficam paradinhos). Eu registro em vídeo os palhaços chegando para engrossar a manifestação em andamento na chapelaria do Congresso. Fazem barulho e graça, mostram a que vieram: “Pare o desmatamento ou eu monto acampamento!”. Sim, das grandes capitais só falta Brasília armar a barraca.
Cacique Raoni, Leandro Cruz, Cacique Megaron
À tarde, os caciques do Xingu chegam a Brasília. Dilma não os recebe. O ministro também não os recebe, mas manda um assessor. A imprensa toda foi enganada pelo ministério que espalhou a informação de que Raoni não mais viria a Brasília, e ele veio. Estive com ele. Não deixaram ninguém acompanhar os xinguanos, nem a acessória jurídica. Raoni em Brasília não sai em nenhum jornal. É claro que vivemos sob uma ditadura. Ditadura dos milionários, das corporações industriais e da elite agrária.
Pior seria ver mulheres, palhaços, índios e idosos sendo agredidos pela PM do DF durante um protesto pacífico pela demarcação do santuário. Eles não sabem o que fazem? Eu faço questão de explicar para eles, calmamente, mesmo enquanto me empurram e agridem por simplesmente estar filmando tudo.
Minha esperança está naquele que Santxiê chama de O Grande Tupã, que está em tudo e todos. Quando ele nos inspira no coração (através de nossa indignação e esperança), podemos escolher agir conforme o coração, ou não. Tomara que muita gente não o cale e se movimente conforme o máximo de suas possibilidades, ou o mundo não será como antes.
MAIS
DOCUMENTÁRIO: SAGRADA TERRA ESPECULADA, sobre a resistência do Santuário dos Pajés

Sagrada Terra Especulada(A luta contra o Setor Noroeste) Documentário - 70min from Muruá on Vimeo.
VIAGEM NO TEMPO: Os Últimos Tapuyas  Meu relato sobre os conflitos de agosto e a história do povo Fulni-ô

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