sábado, 16 de abril de 2011

O Homem que disse "NÃO"

"Olho por olho fará a humanidade toda ficar cega" diz frase em
muro com stencil com a imagem do "Mahatma" Gandhi, que teve
em Thoreau um de seus pensadores inspiradores na estratégia
da desobediência não-violenta
Coluna "Viagem no Tempo", por Leandro Cruz, no Jornal do Povo 16/04/2011

Há pouco mais de cem anos, o jovem advogado indiano Mohandas Karamchand Gandhi ainda não era “O” Gandhi, quando foi parar atrás das grades na África do Sul, por defender o direito das minorias hindus naquele país, ainda mais discriminadas que os próprios negros.
Na cadeia do país do Apartheid, Mohandas leu o ensaio que mudaria sua vida, um pequeno livro enviado a ele por correspondência por ninguém menos que o russo Leão Tolstói. A indicação de leitura era o clássico “A Desobediência Civil”, que o pensador Henry David Thoreau havia escrito depois de passar também uma temporadinha na cadeia por não aceitar ser cúmplice das injustiças de seu país.
Quando criança lembro de ter visto na capa de um livro uma máxima atribuída a Caio Graco: “Os livros não mudam o mundo. Os homens é que mudam o mundo. Os livros só mudam os homens”. Acho que é foi o caso. Uma correspondência entre Rússia e África com o texto de um autor estadunidense libertou a Índia do pesado domínio britânico, ou, pelo menos, ajudou a dar bases filosóficas para a liderança catalizadora de Gandhi.
Ilustração feita com base em clichê
ilustrativo de Henry David Thoreau, que
escrevia diversos artigos contra a guerra
 e a escravidão nos EUA do Sec XIX
É difícil achar homens de almas tão férteis como Gandhi por aí. Mas não custa tentar lançar sementes a esmo e torcer, “desenterrando” um autor que cai cada vez mais no esquecimento nas Américas, que precisa urgentemente ser redescoberto pela juventude.
Em 1817, quando o Henry nasceu, Massachusets ainda não era um estado tão populoso e ainda havia campos nos quais uma criança pudesse crescer se apaixonando pelo Planeta e pela Vida. Apesar de toda a erudição, muito do conhecimento e do caráter de Thoreau veio da Natureza. E se tem um valor que a Natureza é capaz de ensinar melhor que qualquer um, este é o amor pela Liberdade.
A frente de seu tempo, o homem que não suportava ficar trancado em salas levava seus alunos para passear no campo (no melhor estilo peripatético grego) e era completamente contra o uso de castigos físicos na Educação. A visão atrasada da educação dos pais da época fizeram com que não tivesse muito sucesso como professor. Talvez o que assustasse as autoridades escolares daquela época não fosse só a forma, mas também o conteúdo das ideias desse abolicionista.
Crítico da sociedade de seu tempo, vai morar no campo, numa cabaninha simples à beira do lago Walden, aprender sobre a vida, sobre as coisas que não precisa e sobre o que anseia de verdade. Lá escreveu “A Vida nos Bosques”, que não costuma faltar nas bibliotecas de anarquistas, ecologistas e até mesmo monges franciscanos.
Martin Luter King, lider do movimento pelos direitos civis dos
negros nos EUA nos anos 60 é preso por promover piquetes
(pacíficos) e incentivar os negros a desobedecerem leis
 injustas, como as que proibiam negros de sentarem nas
 cadeiras dos ônibus que não fossem as dos fundos
Mas sua obra prima, que estava na cabeceira da cama de Tolstói, Gandhi, Martin Luther King Jr, Julian Assange e de hippies e outras criaturas cabeludas do pacifismo e contracultura dos anos 60: é “A Desobediência Civil” que ele escreveu em tempos de Guerra.
Nos EUA do Século XIX, com república e tudo, a escravidão ainda era uma mácula no país que se pretendia “Terra da Liberdade”. Os políticos do Sul, interessados em manter a escravidão, buscavam expandir a Federação, criando novos Estados que garantissem maioria do bloco escravista nas instancias deliberativas. Esse era um dos principais motivos da Guerra do México, em que os EUA tomaram à força e sem nenhuma justificativa moral metade do território do México. Nevada, Texas, Utah e a Califórnia que vemos nos filmes de Zorro, além de áreas que seriam anexadas a outros estados dos EUA eram parte do pacífico país latino que não tolerava a escravidão. Obviamente nos filmes estadunidenses do Zorro, a resistência a se anexar aos EUA será mostrada como motivada por desvios de caráter e ambição de autoridades locais.
Thoreau decide parar de pagar impostos por discordar frontalmente tanto do escravismo quanto da guerra. A cadeia foi o preço que pagou por não querer pagar as balas que matavam inocentes.
Essa afronta ao Estado, sua recusa a pagar impostos, lhe valeu o rótulo póstumo de “Anarquista”, carregado de toda a carga pejorativa com que imprimem nesse termo afim de desqualificar pessoas “agitadoras”. Mas o adjetivo "anarquista" que não deve ser entendido como uma apologia à barbárie, ou à bagunça como geralmente se pensa. De pronto Henry explica que o que esperava para o momento era “um governo melhor”, isso é um governo justo e mais que democrático, que não pudesse ser manipulado por grupos particulares que usavam o Estado como mero instrumento para interesses próprios, como a imoralidade da manutenção da escravidão.
Para Thoreau as minorias, até a minoria de um homem só, deveria ser respeitada em seus anseios e dignidade. Caso contrário um governo democrático “da maioria” não seria inteiramente justo (os escravos, por exemplo, eram “só” 1/6 da população dos EUA em 1848. Mas o fato de a maioria dos americanos concordarem com isso, não a tornava menos injusta.
Crianças egípcias se recusam a descer de tanque de guerra
durante manifestações contra o regime autoritário de Mubarak
em Janeiro de 2011. A desobediência civil pacífica foi eficaz.
Na visão dele, o Estado é uma abstração, uma concessão coletiva que os homens fazem de parte de seu direito de se autogovernar. Criada convenientemente pelos homens, o Estado devia ser só um meio de garantir que os homens não se molestassem uns aos outros, mas não devia se tornar ele próprio o grande molestador. O melhor governo seria aquele que menos governasse e se fizesse notar. Em exemplo prático: o melhor Estado não é o que tem muita polícia, mas aquele de uma sociedade tão justa em que não há tantas tensões sociais de modo que se posso prescindir cada vez mais da polícia.
Thoreau morreu aos 45 anos. Mas é eterno. E deixa como lição a ideia de que as grandes transformações sociais nascem de grandes transformações individuais, manifestas inclusive em atitudes de recusa a um estilo de vida predatório e à obediência.
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Pra quem quer +
Leia também neste blog: 

O velho de barba branca (e bandeira preta)

sobre Piotr Kropotkin
sobre Mahatma Gandhi (altamente influenciado por Thoreau, Tolstoy e Jesus)
sobre dois arquétipos muito vivos nas "esquerdas" brasileiras e o potencial satyagrahi dos bem-humorados brasileiros #GenteDiferenciada

Vídeos Relacionados: 
Documentário: "Chico Mendes: cartas da floresta", sobre o líder seringueiro campeão da Resistência Pacífica no Brasil. Lutou pela floresta e pelos homens, numa atitude de rebeldia contra o abuso do Capital e do Estado, mas sem ações de violência contra a vida humana.
Clipe: "Désobéissance Civile" (LEGENDADO)
da rapper francesa Keny Arkana, integrante do coletivo musical anarquista "A Raiva Do Povo" (ou La Rage du Peuple) uma das vozes do Hip Hop nas ocupações e levantes europeus



Frases e pensamentos de Henry David Thoreau
"Muitos sabem ganhar dinheiro, mas poucos sabem gastá-lo
"Nunca é tarde para abrirmos mão dos nossos preconceitos"
"A bondade é o único investimento que nunca vai à falência"
"Cuidado com todas as actividades que requeiram roupas novas"
"Como se fosse possível matar o tempo sem ferir a eternidade"
"Existem 999 professores de virtude para cada pessoa virtuosa"
"É preferível cultivar o respeito do bem que o respeito pela lei"
"Qualquer idiota pode fazer uma regra e qualquer idiota a seguirá"
"Muitos homens iniciaram uma nova era na sua vida a partir da leitura de um livro"
"Benditos os que nunca lêem jornais, porque verão a Natureza e, através dela, Deus"
"São precisas duas pessoas para falar a verdade, uma para falar, e outra para ouvir"
"Um homem é rico na proporção do número de coisas de que ele é capaz de abrir a mão"
"Sob um governo que prende injustamente, o lugar de um homem justo também é na cadeia"
"A bondade é o único investimento que sempre compensa."
"Os homens hão-de aprender que a política não é a moral e que se ocupa apenas do que é oportuno"
"Se um homem marcha com um passo diferente do dos seus companheiros, é porque ouve outro tambor"
"Se você já construiu castelos no ar,não tenha vergonha deles. Estão onde devem estar. Agora dê-lhes alicerces."
"Você deve viver no presente, lance-se em cada onda, encontre a sua eternidade em cada momento."

sábado, 9 de abril de 2011

O retrato do fracasso e da tragédia

,
Foto divulgada na internet mostra o deputado
Jair Bolsonaro (direita),do estado que foi palco da
tragédia que chocou o país essa semana, que foi
votado por 120 mil pessoas (talvez muitos pais
de crianças em idade escolar) e é famoso por palavras
de preconceito contra gays, negros e "promíscuos"
Coluna Viagem no Tempo, Jornal do Povo-RS, 09/04/2011




Consternação” é a palavra para aquele momento. Um homem havia entrado na Escola Tasso da Silveira, no Rio de Janeiro, atirando na cabeça de crianças, quando a Rádio Band News transmitiu a entrevista em que o jornalista perguntava (pressionando) se o rapaz tinha ligação com o islamismo. Wellington Menezes de Oliveira, 23, não mantinha contato com os irmãos de criação, já bem mais velhos que ele, desde a morte da mãe adotiva, há mais de um ano. A irmã não tinha muito mais a acrescentar. Mas o jornalista, ao ouvir “barba grande”, fez logo de cara a associação islamofóbica. Em minutos a palavra “islamismo” estava nos assuntos mais comentados do Twitter.

À Globo News, o coronel Djalma Beltrame, demonstrando completa ignorância nesses assuntos, afirmou ainda que o assassino de Realengo havia deixado uma carta confusa e com conteúdo com referências ao “fundamentalismo islâmico”. A essa altura, de blogs neofascistas à imprensa sionistas israelense do mundo inteiro, já, perdoem a expressão, “crucificavam” essa religião.

Mas quando a carta foi finalmente divulgada, cheia de referências a Jesus (e não a Maomé), a Deus (e não a Alá) e de apologia a dogmas cristãos (o interdito do sexo antes do casamento, por exemplo), o mundo calou a boca. Apesar da perversão sexual de demonizar o sexo e considerar “puros”, segundo sua carta suicida, “somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento”, ninguém no Brasil iniciou uma campanha de ódio aos cristãos, pois a maioria do Brasil é cristã ou tem parentes cristãos e sabe bem que a religião não é, necessariamente, causa de atos de ódio.

Nem o jornalista nem a autoridade do Estado pediram desculpas pelo “equívoco”, mas a autocrítica passa longe. Há algumas semanas brasileiros se inchavam de orgulho e vaidade ao ver o presidente dos EUA dizendo que respeita o país e o trata de igual pra igual. Essa semana vem a constatação de que, de fato, estamos cada dia mais parecidos com os Estados Unidos, mas não só em prestígio internacional. Quem não lembrou dos casos de Virginia Tech (2007, 32 mortos) ou Columbine (1999, 13 mortos)? Quanto à imputação precipitada de culpa à comunidade islâmica, minha automática associação histórica foi com Timothy McVeigh, um militante da extrema direita que em 2005 explodiu um carro bomba em Oklahoma, mas antes de divulgada sua carta ultranacionalista os seguidores do Alcorão também levaram a culpa
.

O jornalista Ricardo Boechard se apressou em atribuir os atos
do assassino de realengo ao Islamismo.
Clique aqui e ouça a entrevista direcionada dele com a irmã do rapaz
O que o jornalista não percebeu é que ele próprio reproduzia o comportamento discriminatório que só leva a casos como esse. As cartas dos assassinos de escolas podem ter traços cristãos ou muçulmanos, discursos que lembrem a extrema direita ou esquerda, mas o discurso é somente a forma como eles organizam seu pensamento psicótico.

Mas sabemos que não é nada disso, que nenhuma interpretação “sã” do mundo pode originar violência dessas. O que move é o ódio à escola e às pessoas, ódio insano esse que não nasce do dia pra noite. Filho de mãe esquizofrênica e suicida, o rapaz, que provavelmente também era transtornado, sofreu humilhações e violências ao longo de sua vida. “Alguns ex-alunos se sentem culpados sabendo que inocentes pagarão por um ódio que ele sentia pela nossa turma", disse um ex-colega, que contou que o rapaz sofria bullying, principalmente por parte das meninas.

“Fica tranquilo, gordinho, eu não vou te matar”, contou um aluno sobrevivente, o que dá pistas de que ele se identificava com o garoto cujo tipo físico geralmente é causa de perseguição e humilhações em escolas.

Ele não tinha quem o protegesse na escola, que do jeito que funciona hoje é mais eficaz em criar monstros do que médicos, astronautas ou qualquer outro sonho de menino. Não me interpretem mal: amo a educação, e essa é minha principal causa e razão de viver; eu sou contra a escola, esse modelo desumano de adestramento massivo de gente (sim, 40 crianças numa sala, no auge da vitalidade, já é uma massa, uma pequena multidão, ainda mais quando há alguns que ameaçam até o professor).

Caso da escola Tasso da Silveira mostrou o fracaço do Estado
na Educação, na Segurança preventiva e na Saúde, de modo
especial o tratamento psiquiátrico de doentes mentais, em
especial os potencialmente perigosos
Na escola, onde as pessoas deveriam aprender a conviver com os diferentes, as crianças são medidas, classificadas, pressionadas, caladas. Levam na mochila a carga de preconceito que aprendem em casa com os pais (contra negros, gordos, “esquisitos”, professantes de outra fé, gays).

A escola prepara para o mercado, não para o desenvolvimento humano ou da sociedade. A aposta no ensino técnico profissionalizante, deixando de lado o lado humano, é falha. A educação tem sido tratada como um simples "upgrade" de programação de robôs que antes colhiam pau-brasil, depois cana, depois apertavam parafusos e hoje precisam saber apertar botões. É um país em que chega a ser covardia perguntar para uma criança o que ela quer ser quando crescer.

Wellington, bom aluno, com boas notas, só arranjou emprego numa fábrica de transformar leitões em salsicha.

Wellington, o bizarro retrato do fracasso, o fracasso de uma nação violenta e excludente.

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Vou fazer um Twitcast pra gente poder debater Bullying e preconceito ao vivo na web cam. Deve rolar essa semana. Vou enviar email convidando Boechard, Bolsonaro e Beltrami, mas, acho que provavelmente não responderão. Conseguindo marcar com eles ou pelo menos um deles, eu já aviso hora e data no Twitter.
Mas se nenhum dos BBBs responder, a gente debate sem eles e eu aviso do mesmo jeito. Abração a todos.
Toda a solidariedade às famílias que estão sofrendo nesse momento com a tragédia de Realengo. Paz a todos.
Twitter: @leandrojacruz
Email: viagemnotempo@gmail.com