sábado, 22 de janeiro de 2011

Sudão, Terra fértil para a morte:

No tabuleiro mais visível de uma nova "Guerra Fria", o que bugigangas de R$ 1,99, o Egito, o Google e o George Clooney têm a ver com o palco do maior genocídio do século XXI e sua divisão
Em 1993, o fotógrafo Kevin Carter flagrou um urubu aguardando uma menina morrer de desnutrição para saciar a própria fome no Sudão

Parte 1
Jornal do Povo, 15/01/11
Brinquedos, ferramentas de utilidades domésticas, armações de óculos, motos, vuvuzelas e até, ironicamente, imagens de santos ocidentais. Tudo de plástico, tudo vindo da China, atualmente o segundo maior importador de petróleo do mundo. Há muito tempo que o Partido Comunista Chinês virou só mais uma grande corporação, a diretoria de um país-empresa. Capitalismo de Estado. E o petróleo, que fornece a energia e matéria-prima para o plástico, cada vez mais vem da África, boa parte do Sudão. E é o petróleo que deve garantir ou uma paz duradoura ou uma guerra ainda mais violenta no Sudão agora que esse país que sempre viveu em guerra civil está próximo de se dividir em dois graças ao plebiscito ocorrido essa semana.

E se o Brasil tem Paulo Maluf, o único deputado do mundo na lista de procurados pela Interpol, o Sudão tem Omar Hassan al-Bashir, o único presidente - em exercício - condenado pela Corte Internacional de Crimes de Guerra. O mais assustador é que a maioria dos crimes foi cometida justamente contra minorias do próprio Sudão. Mas a China, principal aliado comercial do país, membro do conselho de segurança da ONU, impediu intervenções e sanções internacionais contra o governo de Bashir.

Viajemos alguns milênios, quando aquela região da África ainda era conhecida como Núbia e formava um império megalítico que acabou esfacelado por outras potências do mundo antigo, de modo especial seus vizinhos do norte, os egípcios (mas ainda hoje estão de pé ali mais pirâmides que no atual Egito). Já nos primeiros séculos da nossa era, comunidades cristãs começaram se formar ali, até que na expansão islâmica do século VII os muçulmanos unificaram a região. O sul, de maioria negra, não se converte e vira escravo dos povos árabes do norte. Embora o domínio muçulmano sempre prevalecesse, as definições de relações de poder e fronteiras eram instáveis, até que em 1822 o Egito conquista e unifica o Sudão. Para o Egito sempre foi importante o controle do Sudão, pois é de lá que desce a água do Nilo, que permite que a vida no nordeste da África aconteça.

Muhammad Ahmad bin' Abd Allah,
o "Mahdi" líder radical islâmico
sudanês, que no século XIX desafiou
o domínio egípicio
Mas em 1881, aproveitando a instabilidade política do Egito nas suas disputas pelo Canal de Suez, um líder radical xiita, Muhammad Ahmed bin' Abd Allah, se insurgiu contra a dominação do Egito (considerado laico e ocidentalizado demais). O cara tinha tanta moral que os xiitas sudaneses acreditaram que ele era o Mahdi.

Parêntese sobre o Mahdi. Os muçulmanos xiitas acreditam que, depois de Maomé, Alá haveria de enviar no futuro um novo profeta e salvador, uma espécie de “messias”, só que muçulmano, o Mahdi. Ou seja, o líder nacionalista muçulmano era visto como sendo de natureza divina. Assim Mahdi conquistou a independência do país e passou a governar com popularidade absoluta entre os muçulmanos, para desespero das minorias do sul. Mas esse Estado teocrático não durou muito. Em 1889, como “messias” havia morrido, os ingleses (que mais do que ninguém queriam sossego no Mar Vermelho), juntamente com os egípcios, retomam o Sudão, que passa a ser um condomínio. Ou seja, diversos grupos étnicos e religiosos sendo uma só colônia e de duas metrópoles. Isso é que é estar subjugado!

A dominação binacional resiste às duas guerras mundiais do século XX. A Inglaterra só concede independência ao país em 1956, porque desde o ano anterior recrudescia a violência interna entre o norte, majoritariamente árabe xiita, e o sul, negro, com cristãos, animistas e sunitas. A Inglaterra não queria ter nada com isso. Ainda “quebrada” com o desgaste da guerra, lavou as mãos e saiu fora.

Ninguém se importou em fazer uma transição ou dar autonomia pro sul, nem nada disso. Simplesmente largaram. Isso é exemplo do que aconteceu com a África toda. Os impérios industrializados europeus do século XIX dividiram a África em fronteiras artificiais, separando grupos étnicos e tribos aliadas e obrigando grupos rivais a conviverem em uma mesma delimitação política. Depois ninguém reorganizou nada, claro. Deixou a desgraça feita. As guerras civis e tribais na África, em todas as ex-colônias, ainda devem se arrastar por décadas (ou séculos, se houver séculos).

Num lugar com pouco pasto e muito deserto é fácil para que os grupos se odeiem e se enfrentem. Mas no Sudão isso era o cotidiano e a política de Estado: massacres, enfrentamentos, escravização, estupros. As ações de reação dos grupos armados do sul não ajudavam a melhorar em nada. De tempos em tempos eram anunciadas e quebradas tréguas. Mas a coisa foi piorar mesmo foi em 1983, quando o presidente decretou a sharia, a lei islâmica, com punições que iam do açoitamento à forca até mesmo para crimes como praticar outra religião. É claro que o sul não ia aceitar.

Eles nem falavam em independência, a essa altura só queriam pelo menos se livrar da sharia, ter uma limitada autonomia. Mas em 89 a coisa desanda de vez, porque um golpe militar leva Omar Al-Bashir ao poder e esse endurece com os rebeldes. Aliás, contra todo o sul. Bashir se mantém até hoje no poder, desta vez por teatrais eleições nem um pouco livres.
Omar Al-Bashir, único  chefe de Estado condenado por
crimes contra a humanidade ainda em exercício;
documentos vazados recentemente pelo Wikileaks comprovam
que além de poder e religião, ele também tem outra motivação.
Bashir desviou 9 BILHÕES de dólares do potróleo do País
e depositou em bancos britânicos
Parte 2
Jornal do Povo, 22/01/11



Em 1989, o Sudão, já maltratado pela guerra civil entre o Norte (de maioria árabe, muçulmana, xiita) e o Sul (formado por diversas tribos negras, cristãos, animistas e muçulmanas sunitas), viu subir ao poder, via golpe de Estado, Omar Al-Bashir, que permanece no poder até hoje por eleições nenhum pouco livres. Bashir inicia uma perseguição ainda maior às minorias do Sul.

Em acampamente, grupo da milícia Janjaweed (algo como
"diabo montado a cavalo", em dialeto local) posa para foto.
Para eles, tudo não passa de "guerra santa";
para seus 2 milhões de vítimas significam a morte;
para China, tudo não passa de "negócios"
Nos anos 90, a China iniciou a exploração de petróleo, foi um dos últimos lugares em que acharam o ouro negro, justamente quando a violência começa a aumentar. E em 2003, um holocausto não televisionado começa. Gangues e milícias islâmicas (os Janjaweed), grupos mercenários treinados, pagos e acompanhados por soldados do Exército oficial entram em cidades e aldeias da província de Darfur assassinando, estuprando e incendiando. O objetivo era eliminar tanto as minorias negras sudanesas quanto de tribos de outros países que haviam se alojado ali justamente como refugiados, fugindo de outras guerras civis. A inimizade milenar que um dia não passava de guerra tribal por moitas para cabras pastarem, agora era o conflito mais sangrento em andamento, um genocídio. A área estava sendo “limpa” pela maioria no poder para garantir o “controle” da região.

Uma equipe da BBC é a primeira a flagrar carros e aviões militares de fabricação chinesa sendo usados pelo governo Bashir. A China oferecia o equipamento e o treinamento para pilotos dos seus caças. A denúncia mais grave (comprovada por fotos e filmagens): o Sudão estava pintando aviões militares de branco (o que é proibido pela lei internacional) de modo a confundir a população de Darfur, que achava sempre se tratar dos voos de ajuda humanitária, quando eram surpreendidos por bombas e rajadas de metralhadora vindas do céu. A ajuda humanitária de verdade, quando chegava, tinha a maior parte desviada para alimentar os próprios milicianos exterminadores Janjaweed.

Para se ter uma ideia: mais de 5 milhões já morreram vítimas da violência no Sudão desde sua independência, em 1956. Desses, 2 milhões foram durante o governo Bashir, 450 mil só nos conflitos de Darfur, em meados da década 2000. Bashir foi condenado por crimes de guerra (se tornando único condenado por esse crime ainda em exercício como chefe de Estado). No conselho de segurança da ONU, a China veta todas as resoluções contra o governo sudanês.

Povoado negro em Darfur após passagem da milicia Janjaweed
usando camelos, cavalos carros e armas chinesas
Quando os mortos em Darfur passavam dos 400 mil e os desalojados passavam de 2 milhões, a comunidade internacional desenhou um acordo de paz entre os líderes da resistência do Sul e o governo. A intenção da China, verdadeira articuladora do referendo que terminou na sexta-feira passada, é manter sob sua influência os dois Sudões, pois é no Sul que fica a maior parte dos poços de petróleo e no Norte fica a saída para o Mar Vermelho (de onde é exportado).
Os observadores da China, da ONU e da União Africana aprovaram o referendo de 2011, conforme notas oficiais dessa semana. O resultado é que mais de 90% do Sul aprovou a independência, que deve passar a valer a partir do dia 9 de julho desse ano. Daqui pra frente teremos apenas perspectivas sobre o que pode acontecer com os dois Sudões:

No norte, Bashir deve aceitar o resultado do referendo, dificilmente moverá guerra contra o vizinho do Sul, pois depende do petróleo produzido lá (a maior parte dos poços do Sudão fica no Sul), e lucrar com o escoamento (a saída para o Mar Vermelho fica no Norte). Sabe que Pequim prefere que daqui pra frente, apartadas as pessoas, a situação fique em paz para a empresa chinesa continuar sugando seu petróleo, que abastece sua crescente indústria de tudo. Para agradar os mais radicais, Bashir deve endurecer a sharia (lei islâmica) no Norte (as mulheres serão as que mais sofrerão). O maior perigo a curto prazo é se os ultranacionalistas do Norte, insatisfeitos com a cessação, derrubarem Bashir (encoleirado pela China) e entrarem em guerra contra o Sudão do Sul.

O ator George Clooney esteve no Sudão do Sul semana
 passada,para acompanhar o referendo e promover um
projeto de sétélites de observação da região desenvolvido
pelo governo dos EUA em parceria com a privada Google;
durante a visita ele pegou malária, mas ao contrário dos
sudaneses, ele terá tratamento médico nos EUA
O Sudão do Sul já nasce com 90% da população abaixo da linha da miséria. O país enfrenta séria carência de alimento, água e remédio. Enquanto isso, a CNPC (China National Petroleum Corporation) extrai o petróleo. Os Estados Unidos pensam no futuro. Querem agora ganhar corações e mentes no Sudão para, quem sabe, um dia a Chevron substituir a CNPC em algumas concessões. Nas igrejas neopentecostais norte-americanas o conflito é visto como se tudo fosse uma “simples” disputa entre o Islã e o Cristianismo, e agora preparam missionários para irem ao Sudão ajudar seus “irmãos cristãos”. Existem redes sociais na Internet em que jovens neopentecostais podem concorrer a uma “oportunidade de missão”, como se inscrever para um intercâmbio (recebendo bolsa e tudo). Mas enquanto os cristãos do Sul estavam sendo exterminados, vendidos como escravos, famintos, nus, expulsos de suas casas, ninguém queria ir pra lá. Weber explica:

Esse movimento de igrejas norte-americanas irem “reformular” o Cristianismo, que tem mais de 1.600 anos no Sudão, pode trazer consequências catastróficas, basta ver como tele-evangelistas se referem às religiões animistas da África: “Bruxaria”. E bem sabemos como os cristãos ocidentais costumam tratar as “bruxas”. E tudo o que os sul-sudaneses não precisam é de tensão religiosa entre os grupos sulistas. Vale bem, muito a pena observar o Sudão, pois ele será o tabuleiro mais visível dessa espécie de “Guerra Fria” que os Estados Unidos, capitalistas liberais, e a China, capitalistas de Estado, devem travar pelas próximas décadas.

Reportagem da BBC comprova que além de armas de mão, Pequim vendeu caças e ofereceu treinamento para que o governo de Bashir "limpasse" a provícia de Carfur

2 comentários:

  1. Tiozão, sobre o meu post no blog sobre propagandas e censura, aquilo era uma piada. A ironia era mais ou menos isso que vc comentou: tem coisas muito mais nocivas para o jornalismo do que esse tipo de comercial [só o fato de eu dizer que sindicatos e grande imprensa deveriam se unir por essa causa ja é uma contradição]. Um abraço

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  2. Olha isto: G1 - George Clooney é preso em protesto na embaixada do Sudão nos EUA - notícias em Mundo http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/03/ator-george-clooney-e-preso-durante-protesto-na-embaixada-do-sudao.html via @g1

    Pena que o mundo moderno e civilizado trate assim até os heróis de verdade.

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