sábado, 29 de janeiro de 2011

O sorriso de Guido

Rosto queimado e escarrado durante séculos volta a levar pavor a tiranos
Trecho do romance em quadrinhos "V for Vendetta", de Alan Moore CLIQUE AQUI PARA BAIXAR O EBOOK EM PORTUGUÊS, DE GRAÇA Na trama o anarquista que pretende derrubar um futurista Estado repressor usa uma máscara inspirada em Guy Fawkes
Por Leandro Cruz - in Jornal do Povo, Rio Grande do Sul, 29/01/2011


Boneco representando Guido Fawkes é
queimadono feriado de Bonfire, na Inglaterra.
Tradição é memorial de terror estabelecido
pelo rei Jaime em 1605,  para lembrar o
destino dos católicos que o desafiaram

no episódio que ficou conhecido como
"A conspiração da pólvora"
Por quatro séculos seu corpo foi queimado nas praças todos os anos, enquanto era insultado com os nomes mais infames, exatamente como o rei James mandou. Agora aparece sorrindo por aí, não só da cara do Estado que mandou que o esquartejassem, mas de cada vez mais e mais governos corruptos e autoritários. O rosto aparece sorrindo nos sites hackeados e nas convocações de apoio às manifestações que, esse mês da década, sacudiram Tunísia, Egito, Iêmen, Argélia e se espalham rapidamente, derrubando regimes e leis autoritárias como numa sequência de dominó.

A face com sorriso largo, maçã do rosto rosadas, bigode e fina barbicha que se tornou uma espécie de símbolo e catalizador dos recentes grandes levantes civis do mundo árabe, já havia sido visto na Europa, nos EUA, e Australia em protestos contra a aprovação de leis que restringem a liberdade de expressão na Internet, em apoio ao Wikileaks, contra o governo Berlusconi, entre outros. Mas, quem é esse cara?

Guido Fawkes (nasceu chamando Guy) era católico e Inglês, o que não era nada fácil de ser desde que o rei Henrique (Henry) VIII decretou que de seu tempo em diante, quem mandaria na religião seria ele. Fundou a Igreja Anglicana e ordenou que os padres se reportassem exclusivamente a ele e ao seu “capachão”, o bispo de Canterbury. Mas boa parte dos católicos apostólicos romanos não aceitaram submeter. A perseguição não tardou.

Cartaz para a internet convoca voluntários
anônimos para ajudarem a derrubar e
hackear os sites do governo egípcio em
apoio aos manifetantes de lá.
O Cartaz mostra uma máscara funerária
egípcia com o sorriso da máscara de Fawkes
As tensões entre católicos anglicanos e romanos se agravariam paulatinamente. A perseguição aos "romanos" era intensa. Os templos haviam sido tomados e padres que se declarassem leais ao papa eram expulsos, presos e mortos. A aristocracia se converteu, é claro. A corrupção, o autoritarismo e a violência do Estado eram intensas. Declarar-se chefe da religião é só o ponto máximo da tendência centralizadora que os Tudor vinham promovendo.

Continuar católico romano, era portanto também uma atitude política, de afronta e contestação ao absolutismo, principalmente nesse caso em que praticamente inexistiam diferenças teológicas. Podemos falar sobre as mulheres de Henrique Tudor e os detalhes políticos do Sisma de 1534 em outra ocasião. Nos anos de 1600, a divisão e o clima de violência estavam consolidados.

Então, em 1605, um grupo de católicos decidiu botar fim ao Estado absolutista, explodindo o prédio do Parlamento no dia em que o rei Jaime estaria presente para seu discurso aos lords (uma espécie de Senado formado por bispos anglicanos e aristocratas que ocupam o cargo vitalícia por direito hereditário).
Foto de Renata Takahashi, colaboradora do blog,
mostra protestos em Sevilha, Espanha, contra a
 prisão de Julian Assange e a proposta de lei de
controle  de informação na Internet conhecido lá
como Ley Sinde(o equivalente ao brasileiro projeto
 Lei Azeredo), deve ser votada esse ano

Fazendo o rei e os lords voarem pelos ares, os conspiradores acreditavam que poderiam coroar uma cabeça católica e instalar um sistema político menos injusto e com liberdade religiosa. Guido Fawkes vinha de carreira militar, era perito em explosivos, e por isso foi o encarregado de guardar e preparar os 36 barris de pólvora no subsolo do prédio.

A conspiração foi descoberta. Há historiadores que sustentam que isso ocorreu por obra de algum traidor dentro do grupo, outros que a informação vazou sem querer quando um deles tentou alertar pessoas inocentes a não comparecerem ao Parlamento no dia 5 de novembro para não correrem perigo de vida, mas a mensagem teria sido interceptada.

Fawkes foi preso e torturado, enforcado, esquartejado. Na tortura, Fawkes resistiu o quanto pode, para dar tempo aos companheiros e no fim entregou só nomes daqueles que já estavam presos e já sofriam a mesma sorte.

cartaz convoca para ações na Tunísia,
 paísque há duas semanas era considerado
 pela Anistia Internacional o país que mais
reprimia a liberdade de expressão


O rei ordenou então que todo dia 5 de novembro lembrada e celebrada “A Salvação do Rei”, que se acendessem fogueiras nas ruas como um memorial. Assim é feito até hoje. Versos ofensivos aos católicos (retratados sempre como desonrados, traidores da pátria) são entoados por grupos anglicanos. Bonecos simbolizando Fawkes são queimados como se faz com o na "Malhação de Judas" no Brasil, só que em festas populares noturnas verdadeiramente grandes e com desfiles oficial, onde expõem o boneco com a corda no pescoço pelas ruas da cidade, antes de chegar ao local da fogueira.


Mas Fawkes é ainda uma figura controversa, sendo chamada de “santo” por uns, de terrorista e traidor por outros. Virou referência de movimentos de contracultura, em especial o punk. E, nos anos 80 do século XX ganhou uma homenagem: inspirou o romance em quadrinhos “V de Vingança” de Allan Moore.



stiker colado por Londres
A trama dessa obra de ficção se passa numa Inglaterra futurista, um estado autoritário em que até as artes são proibidas. O anarquista cognonimado “V”, planeja completar o que Fawkes não conseguiu, explodir o parlamento e o Estado numa série de atos com grande carga teatral, usando uma máscara inspirada nos bonecos queimados no 5 de novembro.

Não vou contar o final de “V de Vingança" para não estragar, mas conto que no mundo real a máscara do homem que quase mudou a história do Ocidente para sempre está se tornando um símbolo de resistência ao autoritarismo. Por isso manifestantes nas ruas e também na Internet (de modo muito especial o grupo conhecido como Anonymous, que derrubou os sites do Paypal, Visa e Master em retaliação à prisão de Julian Assange e raqueou sites governamentais nesses países onde estão acontecendo levantes). O rosto sorridente e bigodudo aparece pichada em muros de instituições como quem diz: “quem ri por último, ri melhor”.
Gravura do século XIX mostra prisão de Fawkes
antes que ele explodisse o Parlamento com
o rei dentro. Além dele foram condenados Thomas

Bates, Robert Wintour, Christopher Wright, John
Wright, Thomas Percy, Robert Catesby
e Thomas Wintour 

Há vários barris de pólvora acumulados pelo mundo, mas esses barris estão acumulados nos corações dos descontentes, como o jovem comerciante de frutas Tunisiano que iniciou o levante que levou à deposição do ditador Zine El Abedine Ben Ali e se espalhou por outros países. É importante notar a falta de centralização das ações e como ciberativistas de outros países têm contribuído para sabotagem digital dos governos e na ajuda à mobilização (via twitter, facebook, etc). Pelo jeito, o rosto que foi alvo de cusparadas da Direita inglesa nos últimos 400 anos, ainda dará muito pesadelo aos tiranos do nosso tempo.





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