Rosto queimado e escarrado durante séculos volta a levar pavor a tiranos
Trecho do romance em quadrinhos "V for Vendetta", de Alan Moore CLIQUE AQUI PARA BAIXAR O EBOOK EM PORTUGUÊS, DE GRAÇA Na trama o anarquista que pretende derrubar um futurista Estado repressor usa uma máscara inspirada em Guy Fawkes |
Por quatro séculos seu corpo foi queimado nas praças todos os anos, enquanto era insultado com os nomes mais infames, exatamente como o rei James mandou. Agora aparece sorrindo por aí, não só da cara do Estado que mandou que o esquartejassem, mas de cada vez mais e mais governos corruptos e autoritários. O rosto aparece sorrindo nos sites hackeados e nas convocações de apoio às manifestações que, esse mês da década, sacudiram Tunísia, Egito, Iêmen, Argélia e se espalham rapidamente, derrubando regimes e leis autoritárias como numa sequência de dominó.
A face com sorriso largo, maçã do rosto rosadas, bigode e fina barbicha que se tornou uma espécie de símbolo e catalizador dos recentes grandes levantes civis do mundo árabe, já havia sido visto na Europa, nos EUA, e Australia em protestos contra a aprovação de leis que restringem a liberdade de expressão na Internet, em apoio ao Wikileaks, contra o governo Berlusconi, entre outros. Mas, quem é esse cara?
Guido Fawkes (nasceu chamando Guy) era católico e Inglês, o que não era nada fácil de ser desde que o rei Henrique (Henry) VIII decretou que de seu tempo em diante, quem mandaria na religião seria ele. Fundou a Igreja Anglicana e ordenou que os padres se reportassem exclusivamente a ele e ao seu “capachão”, o bispo de Canterbury. Mas boa parte dos católicos apostólicos romanos não aceitaram submeter. A perseguição não tardou.
As tensões entre católicos anglicanos e romanos se agravariam paulatinamente. A perseguição aos "romanos" era intensa. Os templos haviam sido tomados e padres que se declarassem leais ao papa eram expulsos, presos e mortos. A aristocracia se converteu, é claro. A corrupção, o autoritarismo e a violência do Estado eram intensas. Declarar-se chefe da religião é só o ponto máximo da tendência centralizadora que os Tudor vinham promovendo.
Continuar católico romano, era portanto também uma atitude política, de afronta e contestação ao absolutismo, principalmente nesse caso em que praticamente inexistiam diferenças teológicas. Podemos falar sobre as mulheres de Henrique Tudor e os detalhes políticos do Sisma de 1534 em outra ocasião. Nos anos de 1600, a divisão e o clima de violência estavam consolidados.
Então, em 1605, um grupo de católicos decidiu botar fim ao Estado absolutista, explodindo o prédio do Parlamento no dia em que o rei Jaime estaria presente para seu discurso aos lords (uma espécie de Senado formado por bispos anglicanos e aristocratas que ocupam o cargo vitalícia por direito hereditário).
Fazendo o rei e os lords voarem pelos ares, os conspiradores acreditavam que poderiam coroar uma cabeça católica e instalar um sistema político menos injusto e com liberdade religiosa. Guido Fawkes vinha de carreira militar, era perito em explosivos, e por isso foi o encarregado de guardar e preparar os 36 barris de pólvora no subsolo do prédio.
A conspiração foi descoberta. Há historiadores que sustentam que isso ocorreu por obra de algum traidor dentro do grupo, outros que a informação vazou sem querer quando um deles tentou alertar pessoas inocentes a não comparecerem ao Parlamento no dia 5 de novembro para não correrem perigo de vida, mas a mensagem teria sido interceptada.
Fawkes foi preso e torturado, enforcado, esquartejado. Na tortura, Fawkes resistiu o quanto pode, para dar tempo aos companheiros e no fim entregou só nomes daqueles que já estavam presos e já sofriam a mesma sorte.
cartaz convoca para ações na Tunísia, paísque há duas semanas era considerado pela Anistia Internacional o país que mais reprimia a liberdade de expressão |
O rei ordenou então que todo dia 5 de novembro lembrada e celebrada “A Salvação do Rei”, que se acendessem fogueiras nas ruas como um memorial. Assim é feito até hoje. Versos ofensivos aos católicos (retratados sempre como desonrados, traidores da pátria) são entoados por grupos anglicanos. Bonecos simbolizando Fawkes são queimados como se faz com o na "Malhação de Judas" no Brasil, só que em festas populares noturnas verdadeiramente grandes e com desfiles oficial, onde expõem o boneco com a corda no pescoço pelas ruas da cidade, antes de chegar ao local da fogueira.
Mas Fawkes é ainda uma figura controversa, sendo chamada de “santo” por uns, de terrorista e traidor por outros. Virou referência de movimentos de contracultura, em especial o punk. E, nos anos 80 do século XX ganhou uma homenagem: inspirou o romance em quadrinhos “V de Vingança” de Allan Moore.
stiker colado por Londres |
A trama dessa obra de ficção se passa numa Inglaterra futurista, um estado autoritário em que até as artes são proibidas. O anarquista cognonimado “V”, planeja completar o que Fawkes não conseguiu, explodir o parlamento e o Estado numa série de atos com grande carga teatral, usando uma máscara inspirada nos bonecos queimados no 5 de novembro.
Não vou contar o final de “V de Vingança" para não estragar, mas conto que no mundo real a máscara do homem que quase mudou a história do Ocidente para sempre está se tornando um símbolo de resistência ao autoritarismo. Por isso manifestantes nas ruas e também na Internet (de modo muito especial o grupo conhecido como Anonymous, que derrubou os sites do Paypal, Visa e Master em retaliação à prisão de Julian Assange e raqueou sites governamentais nesses países onde estão acontecendo levantes). O rosto sorridente e bigodudo aparece pichada em muros de instituições como quem diz: “quem ri por último, ri melhor”.
Há vários barris de pólvora acumulados pelo mundo, mas esses barris estão acumulados nos corações dos descontentes, como o jovem comerciante de frutas Tunisiano que iniciou o levante que levou à deposição do ditador Zine El Abedine Ben Ali e se espalhou por outros países. É importante notar a falta de centralização das ações e como ciberativistas de outros países têm contribuído para sabotagem digital dos governos e na ajuda à mobilização (via twitter, facebook, etc). Pelo jeito, o rosto que foi alvo de cusparadas da Direita inglesa nos últimos 400 anos, ainda dará muito pesadelo aos tiranos do nosso tempo.
Pra quem quer mais:
- Análise: Did Wikileaks and Twitter Cause Tunisia's Revolution?
- Faça você mesmo: Máscara de Guy Fawkes de Origami difícil, mas bem legal.
- Faça você mesmo: máscaras 2D e 3D artezanais mais "sussa" que a de origami
- Releases: Mensagem de "Anônimos"(Anonymous) aos governos do mundo 28/01/2011
- quem tiver mais dicas de Link relativos ao assunto pode postar nos comentários, ou enviar via Twitter pela hashtag #viagemnotempo
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