sábado, 8 de maio de 2010
A verdade dos Bobos
Em meio a essa recente (e divertidíssima) polêmica que tem rolado na internet e na TV (uma picuinha CQC X Legendários) sobre a suposta existência de dois tipos de humor, um do bem, outro do mal, resolvi republicar aqui no blog o artigo da coluna Viagem no Tempo, publicado originalmente no Jornal do Povo, de Cachoeira do Sul-RS. É um texto sobre os sarcásticos "bobos da corte", que tinham um papel político importantíssimo em sua época. São as origens do tal "humor do mal", que em termos de resultado se mostra mais benéfico que o covarde e pouco comprometido "humor do bem".
Leandro Cruz, historiador e professor
Em 1999, um escândalo político na pequena monarquia de Tonga, no Pacífico, fez Jesse Bogdonoff ser destituído de seu cargo. Era o fim de uma profissão milenar. Jesse era bobo da corte.
Reis, imperadores e nobres em geral, desde o Império Romano Bizantino, sempre gostaram de ter em seus castelos um profissional encarregado de fazê-lo rir. Cambalhotas, piadas, mímica, música e acrobacia eram alguns dos truques que os bobos, também chamados de truões, bufos, bufões ou curingas, usavam em seu oficio de agradar à corte.
Mas nem todos os bobos eram da corte. Havia também os bobos do povo, artistas de cidades e também os itinerantes, que viajavam pela Europa em grupo. Companhias que, de feudo em feudo, de burgo em burgo, levavam sua magia, seu teatro, suas palhaçadas. Às vezes esses palhaços viajavam com o circo.
Ah... O circo! Imagine que você vive na Idade Média, seu mundinho é limitado, você nunca viu na TV ou nos livros imagens de elefantes ou leões. De repente, você ouve uma música ao longe e uma caravana vem chegando com homens comendo fogo, criaturas gigantescas de pele cinza e, é claro, bufões de rosto pintado e roupas coloridas virando piruetas e fazendo graça. Mágico, não?
Mas os bobos da corte tinham seu charme especial. Não por conviverem com os nobres, mas por poderem se opor a eles livremente.
Bufos do povo não podiam fazer o que bem entendessem. Se um truão “de rua” falasse mal do rei, certamente teria cortada a sua cabeça, com chapéu de guiso e tudo. Mas os bobos da corte tinham carta branca: podiam criticar, zombar da nobreza diante da própria nobreza. De certa forma, acabavam sendo porta-vozes do povo, pois pelo humor criticavam as cobranças abusivas de impostos ou o que quer que fosse. Invejável direito de ser insolente!
Exemplo clássico disso é Triboulet, cujo nome verdadeiro era Nicolau Ferriol, da corte de Luiz XII e Francisco I, da França. Triboulet, a exemplo da maioria dos bobos, era defeituoso. Tinha corcunda e microcefalia. Uma pessoa com microcefalia tem a cabeça mais ou menos igual a do Shrek, isto é, mesmo com a mandíbula normalmente larga, tem a parte de cima da cabeça (o coco propriamente dito) com uma circunferência bem pequena. O feioso e engraçado bobo certa vez zombou de um fidalgo empurrando-o de uma pontezinha em um rio lamacento. A vítima jurou Triboulet de morte, que correu para se colocar sob a proteção do rei Francisco, que lhe garantiu: “Se ele ou qualquer outro te fizer mal, um quarto de hora depois estará enforcado”. A isso Triboulet, que era bobo mas não era idiota, pediu: “Meu rei, faça-me esse favor completo. Mande enforcá-lo um quarto de hora ANTES de me fazer mal”.
Mas até os reis eram alvos de chacotas. Mesmo assim, nunca um bobo foi morto por isso. O bobo podia tudo. A feiura era uma de suas credenciais para o escárnio irrestrito. Francisco I convidava Triboulet para as reuniões do conselho, pois ele não precisava ter medo de contrariar ninguém, criticar e zombar de ninguém. Assim, com a chacota de um deformado, o conselho ponderava sobre diversos assuntos.
Havia até mestres de bufonaria, como Michel Le Vernoy, que ensinava bobos de tudo quanto é castelo a fazerem graças e malabarismos.
Alguns bobos ficaram tão famosos que acabaram sendo eternizados na literatura, como Dom Bibas, da corte de Dom Henrique, no finalzinho do século XI, na formação de Portugal. Bibas tornou-se personagem principal de “O Bobo” de Alexandre Herculano. Shakespeare também faz referência a bobos em suas peças.
Na negra Idade Média, o colorido espalhafatoso dos loucos bobos era um sinal de luz e humanidade. Lamentavelmente, hoje as maiores palhaçadas (sem graça, por sinal) são cometidas pelos próprios governantes. É importante que o humor seja usado como arma civilizatória, instrumento político de denúncia, que com ironia, sarcasmo e coragem contribuam para uma sociedade mais justa.
credito das imagens
1 - "The Court Jester" de Tim Shumate
2 - Jester - Kevin Middleton
3 - Mônica Iozzi, integrante do programa humoristíco CQC (TV Bandeirantes), que recentemente, com muita coragem e bom humor (a exemplo dos bobos da corte medievais) foi a Brasília pressionar o congresso pela aprovação do projeto Ficha Limpa
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