terça-feira, 18 de junho de 2013

Carnavolução? (ou "O que está acontecendo no Brasil?")

Em São Paulo, policial militar atinge cinegrafista com spray de pimenta durante protesto contra o aumento da tarifa do transporte coletivo, em frente ao Theatro Municipal (foto: Rodrigo Paiva/ Estadão)

por Leandro Cruz

Nos últimos dias, imagens de protestos crescentes no Brasil e de repressão policial a esses atos democráticos têm ganhado o mundo, sobretudo graças às redes sociais e à mídia independente. As análises vindas de fora demonstram completa desinformação por parte das agencias de notícia internacionais, que nos últimos anos vinham reproduzindo o discurso da grande mídia Brasileira, tão corrupta e mentirosa quanto a classe política do País. Tal discurso afirma que o País vive um suposto momento de inclusão social, democracia consolidada e “desenvolvimento” a ser celebrado de forma espetacular na Copa do Mundo de Futebol do ano que vem e nas Olimpíadas de 2016. O interesse das corporações de comunicação de todo mundo nos lucros publicitários durante a cobertura desses eventos calam a boca da imprensa global para a real dimensão dos conflitos políticos e sociais que ocorrem nesse estado oligárquico de dimensões continentais.

A crescente tensão nas ruas de cidades brasileiras entre o braço armado do estado e a população civil não é uma moda lançada pelo Facebook ou uma insatisfação com os preços das passagens de ônibus; embora seja verdade que os gastos de um jovem que use o transporte  para ir e voltar da escola e do trabalho de segunda a sexta cheguem a aproximadamente 40% do valor do salário mínimo mensal brasileiro, de 678 reais (o equivalente a US$ 313,04 ou € 234,66).

Nos últimos anos, o Brasil se tornou a 6ª maior economia bruta do mundo, passando à frente do Reino Unido, no entanto essa festa é para poucos e as bolsas do governo que variam de 2 a 90 reais por família tem servido apenas para mascarar índices de miséria e aliviar um pouquinho as dificuldades de um país onde o preço dos alimentos dispara, enquanto as grandes áreas férteis do país são usadas para produzir commodities para exportação. Com uma das maiores concentrações de riqueza e renda do mundo, o Brasil continua amargando índices sociais dolorosos: 

Octogésimo oitavo país em Educação e octogésimo quinto no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano. Há no Brasil 11,5 milhões de Pessoas vivendo em aglomerados subnormais (favelas, palafitas, grotas, etc.). Mais da metade não tem saneamento. Apenas 10% dos trabalhadores fizeram curso superior. Morrem 23,4 crianças antes de um ano a cada mil nascidas (situação ainda é pior, pois muitos mais morrem sem sequer ser registrada) Para se ter uma ideia em Cuba morrem apenas 6 para cada mil nascidas, na Suécia o índice de mortalidade infantil é de 3  por mil. A População Carcerária brasileira beira o meio milhão, uma das maiores do mundo. Ainda assim, os índices de violência no Brasil são altíssimos e, devido às gravíssimas condições sociais, de moradia, alimentação e vicio em drogas (sobretudo nas camadas mais miseráveis que não tem acesso a qualquer tipo de tratamento). É EVIDENTE que aumento nos gastos com polícia não resolve essas questões.

As polícias estaduais, militarizadas, não gozam há muito tempo da confiança da população.  Além da extrema violência e abusos de autoridade corriqueira nessas corporações, a corrupção é endêmica em todos os níveis. Soldados cobram propina para liberar vendedores ambulantes, motoristas pegos em blitz, ou jovens vítimas de falsos flagrantes de droga; Nos altos escalões, coronéis e secretários de segurança colocam o aparato de violência do Estado a serviço do capital privado. Exemplos recentes disso são as desapropriações de grandes áreas residenciais ou mesmo terras indígenas para a construção de obras para a Copa do Mundo, que só favorecem às grandes empreiteiras e aos patrocinadores do evento (que deveriam ser boicotados mundialmente).

Enquanto isso, o Governo Federal envia tropas para terras de povos indígenas, afim de destruir as florestas e rios que eles habitam para a implementação de projetos hidrelétricos e de mineração que só interessam às multinacionais do ramo e não ao povo brasileiro. Não houve qualquer consulta ao povo sobre esses esforços militares contra nossos irmãos indígenas. Aquelas tropas não nos representam. É como se vivêssemos nosso Vietnã dentro de nossas próprias fronteiras.

Exploração no trabalho, más condições de transporte, saúde e educação, mazelas  sentida na pele por cada brasileiro, de uma forma ou de outra, poderiam parecer pautas isoladas, mas são fruto de um problema raiz, o Sistema Político Brasileiro, profundamente corrupto e controlado pelos interesses financeiros de um grupo realmente pequeno de pessoas, as mais ricas e sem caráter do país. O povo está indignado com todas essas coisas, mas sabe que no fundo tudo é fruto do fato de o dinheiro mandar na política.

O sistema representativo é uma farsa, para alguém ser eleito precisa de altas quantias de dinheiro e de tempo de exposição na televisão. E assim, quem chega a ocupar um cargo público só representa seus próprios interesses e o de seus financiadores.

O Brasil perdeu a crença na classe política, no sistema político e nos partidos políticos embora esse povo não saiba ao certo o que poderia colocar no lugar disso tudo. Algumas ideias aparecem já nalguns cartazes nas ruas ou discursos nas redes sociais, como Democracia Direta, ou maior autonomia regional para a administração do dinheiro arrecadado (O Brasil é um dos países com maior carga tributária do mundo) com participação da população na gestão desses recursos. Não falta quem compareça aos protestos com bandeiras pretas e vermelhas pedindo até mesmo o fim do Estado. Há também aqueles jovens mais exaltados, sobretudo das periferias, que sofrem diariamente de maneira mais truculenta na mão da polícia e dos grupos de extermínio (formados por policiais), que querem justiça por seus parentes e amigos mortos e humilhados, uma justiça que o Sistema não vai oferecer.

Os protestos “por melhor transporte” deram aos brasileiros nas últimas semanas a sensação de não estar sozinhos e a certeza de que com união o povo pode adquirir um poder capaz inclusive de suplantar as instituições NADA DEMOCRÁTICAS do Estado e sonhar com um país sem privilégios para a classe política, com redistribuição de riquezas e com serviços públicos geridos de maneira eficaz, sem os ralos da corrupção e da troca de favores políticos e financeiros.

Se a revolta é maior que os 20 centavos a mais na passagem de ônibus e maior até que as dezenas de bilhões de reais em dinheiro público gastos para a realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas de 2016, há de se esperar os resultados desse momento histórico em que o povo começa a descobrir seu próprio poder sejam maiores que a revogação do aumento.

Do mesmo modo que as manifestações não tem líderes, tampouco tem um “demônio” definido como ocorreu, por exemplo, na Meia Revolução Egípcia. O povo parece estar cansado de tentar corrigir o país simplesmente trocando os corruptos, nas eleições quadrienais ou via processos judiciais que sempre acabam “em pizza”*. O próprio sistema é corrupto e desprovido de controle social, de modo que esse sistema não fornecerá as ferramentas para emendar a si próprio. No entanto, o povo deve estar atento e participando diretamente de qualquer processo de rompimento ou reforma institucional, para que aquilo que venha a balizá-lo seja a vontade do povo nas ruas e os ideais de autogestão, horizontalidade, não-violência, democracia, respeito e justiça. Não podemos aceitar a militarização da questão, não podemos aceitar golpes como a Direita militar, midiática e ruralista pode vir a tentar fazer; nem tampouco tolerar oportunismo eleitoreiro de nenhum aproveitador (nem da velha Esquerda partidária, nem da Direita).

A Primavera Brasileira tem tudo para ser a mais bonita e divertida de todas. Que não hajam mortes. Um processo como esse, que pode vir a exigir acampamentos e paralizações, deve ser vivido com alegria, solidariedade e união. Organização e muita ajuda mutua serão necessárias.

Já sabemos que não precisamos provar para ninguém mais no mundo que a gente joga futebol melhor que qualquer outro. Então, talvez nesse ano que falta para a Copa do Mundo (se é que ela vai acontecer) os “190 milhões em ação”** deixem de apenas assistir e torcer pelo Brasil e entrem em campo, no campo, na cidade e na floresta.

Entrar em campo pode ser absolutamente qualquer coisa que qualquer um pode fazer com um pequeno gesto pelo coletivo: o cidadão que vai às ruas; o morador de imediações que libera o sinal da internet para transmissões independentes dos protestos; a estudante de enfermagem que presta ajuda aos feridos nas ruas se houverem conflitos; as pessoas que compartilham alimento com os acampados; o brasileiro que vive no exterior e incentiva as pessoas dos outros países a boicotarem os patrocinadores da Copa; o policial que se nega a cometer violência contra seu próprio povo e renuncia ao emprego se preciso for para não se prestar a papel tão odioso como machucar gente honesta e honrada para defender uma classe política e econômica tão vil.

A Carnavolução, o levante satyagrahi*** mais multicultural e colorido do mundo, parece estar só começando e é bem mais importante para nós do que o nosso time nacional de futebol ganhe uma sexta estrelinha para bordar na camisa.

Leandro Cruz é jornalista e historiador, editor do blog Viagem no Tempo ( www.viagemnotempo.com.br ) autor do livro "Capitalismo: Religião Global" disponivel para download gratuito no link http://www.sendspace.com/file/b32xtk

 - * “acabar em pizza”, é uma expressão brasileira usada para definir os desfechos de investigações e processos contra políticos que tradicionalmente saem impunes.
-** “milhões em ação”, referencia a uma música tradicional de apoio à Seleção Brasileira durante as competições internacionais de futebol
- *** “satyagrahi”, referente à Satyagraha (em sânscrito “Força da Verdade”), a estratégia de luta popular pregado por Gandhi, que defende a intransigência na defesa das causas justas, a desobediência civil, mas a recusa completa ao uso de violência, ainda que o opressor agir com violência. O método teorizado e aplicado por Gandhi durante o processo de independência da Índia foi em parte inspirado pelas ideias de Thoreau, Tolstói e Jesus.


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