sábado, 14 de janeiro de 2012

Da luz às trevas

Dezenas de crianças foram "apreendidas" oficialmente por
policiais na operação na Luz; há relatos de desaparecimento
(Foto: Domingos Peixoto); na foto, policial à paisana

aponta arma para cabeça de menino

Nesse momento, a Polícia Militar do Estado de São Paulo, força estatal de repressão maior até mesmo que o Exército Brasileiro, ocupa a histórica região da Luz (+ Sta Ifigênia), que a imprensa e os governos passaram desde a década de 90 a chamar de “Cracolândia”. De fato, muitos prédios abandonados e ruas dali se tornaram espaços de consumo da destruidora droga e tudo de ruim que está relacionado a ela (violência, exploração sexual, etc.). A área foi abandonada, deliberadamente, segundo moradores da região. A própria grande imprensa contribuiu para tornar a área zona de abandono.
Abuso policial contra pessoas desarmadas marca ocupação
da "Cracolândia" em São Paulo (foto Eduardo Enemoto)
As reportagens e o apelido aterrador contribuíram para duas coisas: A primeira delas foi propagandear, anunciar para todos os viciados da cidade: “Ali vende, ali dá pra ficar”. E enquanto isso, pela cidade, milhares de moradores de rua eram espancados ou mesmo mortos. São imigrantes mal-sucedidos, gente que perdeu o emprego no campo, gente que perdeu tudo nalguma tragédia, crianças que fugiram da violência em casa, indígenas que perderam a terra e caíram na indigência, egressos do sistema prisional que não receberam uma segunda chance, deficientes físicos e mentais, gente que não conseguiu um espaço. De fato na rua há aqueles que acabam escolhendo "o crime", mas a maioria nem sabe direito o que é escolha.
Ano passado conheci no Ocupa Sampa alguns sobreviventes, gente que contava histórias como a de Dona Cida que narrou-me certa vez como agentes da GCM (Guarda Civil Metropolitana) uma noite colocaram fogo dormindo. Outros explicavam por que estavam mancando ou com esparadrapo na testa, a explicação era quase sempre: PM ou GCM.
A “Cracolândia” foi fabricada. Era pra lá que o Sistema e o Estado (apenas mais um aparato que o Capital já tomou para si) varriam o seu “resto da equação”. Primeiro você varre um monte de gente para a miséria. Depois para a rua. Depois para o vício. Em seguida para a “Cracolândia”. E depois, para uma vala comum. Assim o crack vive uma falsa ilegalidade. Por um lado ele é oficialmente “proibido” pelo Estado. Por outro ele é permitido e altamente interessante para o modelo de Capitalismo vigente. É uma arma de destruição em massa contra aqueles que estão abaixo da base, na sola da pirâmide.
Pessoas sem condição de consumo podem contribuir com o giro da economia comprando pelo menos a pedra de seu vício, comas migalhas que conseguem vendendo o corpo ou roubando carteiras. Enquanto não morrem (sendo assim menos um nesse “resto de equação matemático-social”), não se rebelam, pois viciados não conseguem falar, ouvir, pensar mais elaboradamente, se articular, se unir contra o Sistema que os colocou na condição de miséria.
População viciada da Luz não recebe apoio social, médico nem
psicológico; muitas pessoas caem na marginalização por causa
da droga; a maioria entra na droga por causa da marginalização
A segunda contribuição da imprensa paulista e nacional, pela maneira como tratou a situação na Luz nos últimos anos, foi o afastamento do resto da população. A criação do medo fez com que, em vez de que se buscasse alternativas e soluções para os problemas (das drogas, da cidade, da população nessa situação), ninguém quisesse passar nem perto daquela zona de exclusão.
Passados 20 anos, os especuladores imobiliários (o que inclui, mais uma vez, muitas empreiteiras e o setor de mineração - fornecedores de concreto, aço, etc.) podiam contemplar o que queriam. A área desvalorizada. Os programas governamentais para moradia não privilegiam recuperação de imóveis prontos, uma vez que o número de domicílios vagos supera em quase um milhão o déficit habitacional em todo o país (Censo 2010).


Assim, quem sonha em ter um teto tem que se endividar bem mais, e quem é dono de empreiteira ganha mais dinheiro. Soma-se a isso a valorização do metro quadrado em grandes cidades brasileiras com a aproximação da Copa do Mundo estão tendo e pronto: os controladores do poder viram que era hora de entregar a área desvalorizada aos tubarões da especulação; criou-se o projeto Nova Luz, que vai desapropriar mais de 30% da área construída para demolir e construir mais edifícios novos. Moradores antigos do bairro (que é bom que se saiba, muitos não têm qualquer relação com drogas) estão revoltados. A Prefeitura os expulsa com indenizações vergonhosas enquanto aos ocupantes viciados estão sendo expulsos a bala.
No dia 12/01, enquanto a PM paulista tratava com balas e
chutes os viciados da Luz, para espantá-los da região, a
presidenta Dilma e o governador Geraldo Alckmin anunciam
parceria para construção e financiamento de moradias; não
para os miseráveis da rua
Não. As ações que a TV mostra da Polícia atuando na Cracolândia não são para oferecer tratamento de saúde nem enfrentar o crime, como gritam excitados os mesmos apresentadores que essa época do ano costumavam ser apenas narradores de enchente. O que está em jogo são os negócios. E a Polícia cegamente (ou não) está agindo como milícia privada de interesses particulares.
Segundo uma fonte do Movimento Nacional da População de Rua, outro negócio que estaria em jogo seria o lucrativo mercado de manicomialização, que quer voltar a receber rios de dinheiro do Estado para internar como louco qualquer viciado ou morador de rua ou miserável em geral com a chamada “internação compulsória”. Manicômios privados (sem qualquer preocupação com recuperação) receberiam boa parte dos catados pelas “carrocinhas humanas”, já que, sabidamente (e deliberadamente), o Estado não tem estrutura para dar tratamento a essas pessoas.
O que há é uma guerra aos pobres. O avanço do rolo compressor capitalista sobre os corpos de brasileiros. Pois nenhuma pessoa de boa-fé pode achar que prisões, espancamentos, bombas e assassinatos sejam um bom remédio para dependência química ou para nossas doenças sociais.

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Raquel Rolnik urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada explica o  projeto Nova Luz.

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