Texto 1 - 22/09/12 -
Espantalhos, devotos e aquilo que ainda não tem nome
-- A madame quer que a Polícia limpe a praça suja de pessoas para que ela possa levar sua cachorrinha para fazer cocô --
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Estudantes de Direito fazem "sentaço" durante vigília em apoio à população de rua no Largo São Francisco na madrugada de 17/18 de setembro. Nessa noite, pessoas de mundos diferentes dançaram e dormiram juntos e ninguém foi acordado com água ou gás de pimenta |
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Trabalhadores do mundo, univos"
Karl Marx
Que os devotos mais fundamentalistas de guru Marx (que a paz esteja com ele) não se sintam ofendidos. Por favor, amados “ortodoxos”, vocês não precisam começar a bater no peito chorando e gritando “Marx akbar” ou “La Ilaha illa Marx”. Mas temos que estar prontos a abandonar alguns dogmas de vez em quando. Reconheço que o profeta de vossa crença muito nos ajuda a entender o mundo, a pensar o capitalismo. De fato, ele nos deu instrumentos teóricos excelentes. Mas, bem... Até o sistema solar ou o mapa mundi são atualizado de vez em quando. Não devemos ser tão apegados ao sentido literal dos livros que consideramos sagrados. Temos que entender que, embora nossos ancestrais, teóricos, poetas e profetas antigos tenham nos legado tesouros de sabedoria, eles escreviam cada qual à sua época. No Século XIX ninguém imaginava mesmo o Brasil no centro do capitalismo global, por exemplo. Ele sabia que estava no Século XIX e sabia que era uma das maiores mentes do seu tempo.
No entanto, há algo que a história está demonstrando ao vivo, a cores e em 3D diante dos olhos desse observador do século XXI que Karl (que a Paz esteja com ele) não previu com exatidão: a questão do suposto protagonismo da classe operária no processo histórico de superação do Capitalismo.
Não. Não está sendo assim. O capitalismo continua devorando mundo e meio e não se vê sequer classe operária se entendendo como tal. Não serão os trabalhadores quem começarão a revolução, mas sim os “vagabundos” (ou pelo menos aqueles que assim são chamados pelas classes dominantes). O trabalhadores estão viciados em TV e ocupados demais em querer ser burgueses. Egoístas e individualistas, sem sentimento de solidariedade ou fraternidade, cada um deles parece acreditar que um dia será uma Cinderela social (seja via Mega-sena, via concurso público ou sorte na edição seguinte do Big Brother Brasil). Outros acreditam no jogo, acham que, se quem sabe o candidato Seis ou o candidato Meia Dúzia ganhar as eleições aqui ou acolá, será o ajuste suficiente para os problemas do sistema predador. Um tipo de otimismo que de nada ajuda.
A favela Moinho voltou a pegar fogo. Claro que a Polícia e a TV iam botar a culpa em um homossexual pobre usuário de drogas. E ponto final. A Polícia é usada para retirar moradores, impedir o retorno dos que fugiram das chamas e a reconstrução dos barracos. Assim, o Estado de certa forma assina que os incêndios em favelas são mesmo crimes premeditados pela especulação imobiliária e que os braços armados das coisas públicas são usados em favor dos criminosos e contra a população.
Em São Paulo proíbem dar sopa para quem tem fome, proíbem cantores de cantarem nas ruas. É proibido plantar frutíferas no Centro. Cavaletes de campanha ocupam espaço público, praças e calçadas. Mas se um ser humano ocupar no mundo o espaço de seu corpo simplesmente para existir, parece algo absurdo se o ser humano em questão for pobre. Pessoas somem por aqui. O capital é absolutista por aqui.
A burguesinha quer que a Polícia limpe a praça suja de pessoas para que ela possa levar sua cachorrinha de estimação para fazer cocô.
Na noite de quarta-feira, 19, pouco antes do fechamento do metrô, a viatura 40627 da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, com apoio de pelo menos mais cinco outros agentes que atuam no centro da capital paulista, encurralam duas crianças no calçadão escuro que passa ao lado da Sé. O jovens, que já não tinham para onde ir, naquele momento não tinham para onde fugir. Não sei se estão vivos.
No dia 9/9, a Operação Espantalho ( http://youtu.be/3TiPLNud7Lw ) expulsa com violência pessoas em situação de rua da frente da histórica Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP... Ah, a USP... Em muitos sentidos um reino da fantasia tão alienante quanto as novelas.
Muitos dos refugiados que estavam dormindo em frente à faculdade (que já foi convento) eram sobreviventes do primeiro incêndio da favela do Moinho no começo do ano. Há mulheres e crianças nessa área do centro de São Paulo.
Agora, todas as noites, muitas viaturas da GCM ficam paradas cercando o Largo São Francisco para intimidar e agredir a população em situação de rua que dali se aproximar durante a noite. Pouco antes de amanhecer, todos os dias. Um caminhão-pipa passa jogando violentos jatos d'água nas pessoas que dormem nas imediações. São centenas de pessoas. As câmeras nunca estão filmando quando a carrocinha pega e some com alguém.
Penso que as paredes da Faculdade de Direito, bem como as do grande templo da Sé podiam ser ótimas fortalezas, campos de refugiados para essa gente que está sendo morta nessa guerra social, essa guerra que o capital promove contra o ser humano e a vida em si, essa guerra em que quem não dá lucro é tratado como sujeira e inimigo. (continua)
Texto 2 - 29/09/12 -
Debates, palavras, conceitos... AÇÕES!
-- Guerra territorial a paus, pedras e fogo é travada no centro da metrópole longe da TV --
"O fogo não destrói somente madeira e bens materiais. Destrói o esforço do trabalho sangrado. Destrói os planos. Destrói os sonhos. Destrói os espaços de convívio. Enfim, toda uma história de trabalhadores quase sempre pretos, excluídos, sofridos, varridos. Mas, lutadores, persistentes, indestrutíveis! É isso mesmo! Porém... o fogo é uma das muitas táticas utilizadas pelos empresários das desgraças (construtoras, prefeitos, vereadores, bancos, polícia, GCM,...) para ganhar mais dinheiro! É pisando, prendendo, queimando, matando, mentindo que eles obtêm o lucro que os faz cada dia mais dominadores sobre nós.
Mas o fogo não é só deles. É nosso. Vamo aí! "FOGO NA BABILÔNIA”"
do fanzine intitulado Incêndios de Inspiração Capitalista, que tem circulado em São Paulo e na internet.
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Moradores tentam resgatar pertences e reconstruir barracos destruídos pelo último incêndio na Favela do Moinho, quedeixou mais 80 famílias sem teto em São Paulo |
Finalmente a palavra “Levante” foi mencionada. Na verdade eu gosto até mais dessa palavra do que de “Revolução”. A última teve seu sentido banalizado e hoje é usada até mesmo por operadoras de celular em sua publicidade. “Levante” ainda não soa tão banal, nem tão apocalíptico-religioso-messiânico-ortodoxomarxista.
Um “Levante” não precisa esperar a maioria. Um “Levante” não precisa esperar a popularidade da presidenta e da novela baixarem. Existe uma galera falando em “Não Violência”... Mas quem pode garantir? Eu acredito Satyagraha, em Ahimsa, acho que o Sermão da Montanha é uma via válida de luta contra o Capitalismo, que é a mais assombrosa, totalitária e alienante experiência de sociedade humana já existente desde que os Homo sapiens surgiram na Terra. Mas quem pode deter a fúria de lombos açoitados há tantos séculos e gerações, e que agora se veem no limite?
A palavra “Levante” já foi dita. Acontece que a palavra “extermínio”, “gentrificação”, “genocídio” também já foram ditas faz tempo. Então desejo que seja satyagrahi! Ocupações, negações, redes de solidariedade. “Levante”... Mas quem garante?
Não posso negar que um carro incendiado (sem ninguém dentro, por favor) não é de forma alguma um processo mais violento que o próprio processo de fabricação desse carro. E definitivamente, um carro pegando fogo não é de forma nenhuma algo mais violento que um barraco pegando fogo.
Até o momento foram 34 favelas incendiadas em São Paulo. Numa “coincidência” incrível: as favelas incendiadas estão justamente nas regiões que mais se valorizaram na metrópole. Há de fato uma guerra por território em São Paulo travada entre o Capital e as pessoas. O Estado está sempre do lado do dinheiro. Isso acontece por que empreiteiras e o ramo imobiliário em geral são as maiores financiadoras de campanha de todos os principais partidos.
Sobram imóveis prontos, vazios, fechados em São Paulo, são centenas de milhares. Mesmo assim os “empreendimentos” imobiliários são os que mais dão dinheiro. Especulação, pura e simples. Construindo-se mais, ganha-se mais dinheiro. Muitos gringos têm comprado pedaços de São Paulo, construído torres de escritórios corporativos.
O capitalismo e os capitalistas olham para o Brasil (e também para a Índia e a África do Sul, um pouco menos) como seu bote salva-vidas. Depois que a Europa estiver em chamas, os arquitetos da destruição vêm ganhar dinheiro aqui, vêm escravizar aqui, vêm sugar a Terra aqui. Enquanto se revira a terra, os rios e a floresta para corporações transnacionais terem minério a baixo custo (pois não se contabiliza sangue nem seiva alguma), os diretores querem ter escritórios em torres espelhadas na nova Manhattan.
Perdoam-se dívidas de grandes criminosos como Naji Nahas (“dono” do Pinheirinho), manipula-se o Judiciário, tudo por que os empreendimentos milionários podem render gordas caixinhas pra muita gente nesse processo. Mas isso envolve retirar os pobres do caminho. Aí entram os incêndios, as reintegrações de posse com ou sem base jurídica, com polícia ou com milícias.
Para aplacar os ânimos da “opinião pública” os vereadores criaram uma CPI para investigar o incêndio em favelas. Na última quarta-feira, 26, conforme as pessoas de diversas comunidades incendiadas e ameaçadas pelo Capital haviam deliberado em assembleia, manifestantes pacíficos, armados com cartazes e instrumentos musicais estavam na frente da Câmara de Vereadores. Mas, pela quinta vez, não aconteceu reunião da CPI por falta de quorum. Isso é: os vereadores não apareceram para trabalhar.
Isso de certa forma ajudou essas vítimas do Capital a enxergarem que, de fato, o sistema é uma farsa. O jogo das eleições, com horário político e votação, também faz tanta diferença quanto a escolha da Miss Universo ou do campeão de “A Fazenda” no canal do Macedão. Pois os caras simplesmente não vão trabalhar; e quando vão, o fazem para defender justamente os interesses dos inimigos das pessoas (aqueles que pagam as propinas e campanhas).
Então se ouve falar em “Levante”, à boca pequena e também no microfone.
Não sei bem o que isso pode querer dizer a curto prazo. O fato é que essas pessoas estão lutando pelas suas existências. E isso é muito justo.
(Continua)
Texto 3 - 06/10/12 -
A, B, C da mentira sociológica
-- Classificar a sociedade pelo consumo na situação conjuntural e não sua relação com os bens de produção e poder político produz graves distorções analíticas --
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Vivemos hoje novas formas de vida, novos regimes precisam criar identidades que se adaptem a eles. Daí que é comum hoje governos e meios de comunicação inventarem um passado. Como dizia George Orwell, estamos em uma idade em que o presente controla o passado. Altera-se a história para servir aos interesses de alguns poucos grupos. (...) É vital o historiador lutar contra a mentira. O historiador não pode inventar nada, e sim revelar o passado que controla o presente às ocultas”.
Eric Hobsbawn (Alexandria, junho de 1917 – Londres, outubro de 2012)
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Moinho sitiada: Guarda Civil Metropolitana impede que moradores das mais de 80 casas destruídas pelo último incêndio retornassem para recuperar pertences e iniciar a reconstrução de suas vidas |
Pode apostar: puxar um carrinho de sucata com algumas centenas de quilos ou toneladas debaixo de um sol de rachar (ou na madrugada gelada) não é fácil e não enriquece. Dessa maneira, recolhendo papel e metal para reciclagem, uma multidão tenta conseguir a sobrevivência, fazendo um bem danado para todo mundo que compartilha essa sociedade e esse planeta. No entanto, em São Paulo, essas pessoas são tratadas como marginais; são por muitas vezes chamados de “vagabundos” ou coisas piores.
Os povos indígenas, que conseguiam construir sociedades mais igualitárias e equilibradas com a Terra, produzindo alimento e construindo ocas em abundância para todos (além de terem democraticamente soluções medicinais para todas as doenças conhecidas em seu mundo antes da invasão), também foram chamados assim, “vagabundos”, desde que se recusaram a ser escravos quando os portugueses chegaram chegando aqui nos anos 1500.
Não tenho dúvida de que esse trabalho, o de recolher material para reciclagem, é mais limpo e digno que o dos policiais de hoje em dia (só de hoje em dia?), de modo especial os da Guarda Civil Metropolitana em São Paulo. Além disso, recolher o lixo do capitalismo demanda bem mais esforço físico e é bem mais útil para a sociedade do que bater em mendigo, desfazer rodinhas de jovens sentados na grama do Anhangabaú ou ficar parado o dia inteiro igual a uma estátua do lado das estátuas para “proteger o patrimônio”.
A Favela do Moinho, entre o centro da capital paulista e os centros de reciclagem da Barra Funda, foi fundada por catadores de papel, que ocuparam terrenos vagos e as ruínas do Moinho Matarazzo (há décadas desativado). Ali foi o refúgio seguro para centenas de famílias até começarem as reviravoltas que levaram o Brasil para o centro do capitalismo global (crise de 2008, descoberta do pré-sal, escolha do país para sediar grandes eventos esportivos) e todas as peraltices especulativas e golpes econômicos que acompanharam esse processo.
O Brasil pensa estar crescendo. Entretanto, o que ocorre é só o capital avançando por esse território (a custos altíssimos). Mas o que se passa é que uma parcela da população passou a ter mais facilidade para se endividar e consumir. A chamada classe C anda de carro (mas os carros são dos bancos) e comemora que agora pode deixar de pagar aluguel para sempre e pode pagar “aluguel” só pelos próximos 30 anos, morando nos 3x3 do "Minha Casa, Minha Dívida”.
É inegável que os programas de transferência de renda e o acesso ao crédito tiraram (conjunturalmente) uma parcela da população de uma situação ainda mais precária. Isso está longe de ser uma transformação estrutural e é uma situação bastante precária, sem garantias de que essas pessoas sigam pelos próximos anos tendo o padrão de vida (ah, sim, as dívidas persistirão...).
E as classes D e E? Hã???
Sim, elas existem, e são milhões de pessoas. Mesmo que a novela, o noticiário e os programas políticos digam o contrário, há quem não esteja compartilhando desse sonho fake de Cinderela (ou “empreguete pop star”).
Existe o Brasil fora da estatística. Aqueles que morrem como indigente, aqueles que o Censo não conta. Fazem parte desse grupo as toneladas de crianças que nascem com poucos gramas e morrem antes de serem registradas nos grotões de miséria do país, de modo que sequer pesam nas estatísticas de mortalidade infantil.
Então só sobra o Brasil Maravilha, o Brasil da novela.
Classes A, B, C... Bobagem. A distorção começa por aí. Começa com o uso desses conceitos alfabéticos cretinos. De repente, a sociedade é classificada por letras, baseado unicamente no padrão de consumo atual, em coisas como quantos televisores a família tem.
Eric Hobsbawn, o cara que melhor entendeu o Século XX, morreu, deixando um grande legado historiográfico, mas se pudesse nos deixar alguma forma de deixar um conselho póstomo seria: “Não deixem de analisar a sociedade baseando-se em que posição o sujeito está localizado frente aos meios de produção, não de consumo”.
Nesse sentido, existem aqueles que detêm os meios de produção (terra, máquinas, etc.) e aqueles que não têm nada mais o que vender senão a si próprios. Dentre esses últimos, existem os que mansamente aceitam ser roubados (mais valia) e encontram alguém pra quem se vender, e também há aqueles que são “vagabundos”, uns por convicção ideológica, outros por falta de escolha (como os catadores impedidos de trabalhar pelos senhores de metrópolis, que, além de tudo, botam fogo nas favelas).
E quem de fato sustenta esse estado geral do sistema é o “trabalhador”, que hoje não se enxerga enquanto tal. Ele se enxerga enquanto consumidor C, D ou E; ele se enxerga enquanto corintiano, palmeirense, gremista ou colorado; ele se enxerga enquanto petista, tucano ou evangélico; ele se enxerga enquanto “cidadão de bem”, mesmo que seus bens estejam alienados ao banco.
(Conclui semana que vem)
Texto 4 - 13/10/12 -
É sempre mais escuro antes de amanhecer
-- Há cada dia há de se aumentar a descrença no sistema, enquanto se cresce a fé na solidariedade e na autogestão --
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Olho por Olho, e a humanidade acabará cega”.
Gandhi
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Padre Julio Lancelotti conversa com estudantes, ativistas e sem-teto durante vigília no Largo S.Francisco |
Depois de uns dias, eu volto ao Largo São Francisco. Está quase anoitecendo o 4 de outubro, dia do rebelde de Assis. Um som de violão e música cristã; uns jovens em trajes franciscanos cantam e dançam com alguns sem-teto, apesar da chuva fina. Pelo menos em frente à faculdade de Direito da USP, a GCM não está esculachando mais. Basta um policial se aproximar para “tocar” um sem-teto por ali que logo aparecem estudantes para defendê-lo. Eles sabem que uma violação ali gerará uma nova vigília, uma inflação do movimento, com mais estudantes e militantes despertos oriundos também da chamada “classe média”. Mas na periferia o massacre continua.
A escalada de violência é vertiginosa. A Rota e outro grupos de extermínio têm matado dezenas de civis. O PCC responde e mata policiais. O Estado responde e mata mais um monte: sete para cada um, pegos aleatoriamente nas ruas. Desse jeito isso não vai ter fim. O Estado não chora. O Estado não liga que morram policiais. Para ele, é só contratar mais. Sempre (ou não) vai ter uns coitados de cérebro comido dispostos a morrer por governos e governantes assassinos em troca de um salário mensal.
Essa não pode ser a Única resposta possível. De nada adianta. Só “legitima” ante a opinião pública, viciada em programas de violência- espetáculo travestida de jornalismo. E esses que morrem não são todos “vagabundos”, no sentido que a TV dá a essa palavra. Não são todos “marginais”. São pobres, em sua maioria negros e nordestinos, que moram em bairros pobres.
As tropas de elite das forças policiais são formadas geralmente por psicopatas, oriundos também da tal “classe média” já carregados ideologicamente de preconceitos e ódios. Não são poucos os jovens desses grupos de intolerância de caráter fascistoide (do tipo que espanca guei na Paulista) que entram para a Polícia para simplesmente poderem se divertir. Esses obtêm mais sucesso na carreira militar que o honesto (pelo menos no início) policial oriundo da periferia, que entra na Polícia para defender o pão de cada dia ou por acreditar ingenuamente que na corporação estará necessariamente servindo a Justiça.
O amanhecer do dia 18 de setembro foi um atentado à metrópole. Para muitos, foi uma brisa refrescante no inferno. Ninguém foi chutado nem acordado com gás de pimenta. O caminhão-pipa não passou expulsando as pessoas com jato d'água sob o pretexto de “lavar a calçada”, como vinha fazendo. Isso porque estavam todos juntos, unidos... Circunstâncias que deviam ser mais permanentes e generalizadas. Tinha tocado Bob Marley, Racionais e Michael Jackson e a galera tinha dançado muito. Mas depois o som foi desligado, muitos conversaram bastante. Rolaram rodas de conversa e uma grande roda. Todos os que estavam cansados puderam dormir em paz. Um cara com traje de franciscano propôs uma oração. Mas oração profunda aconteceu no momento seguinte no silêncio. Ouvimos os passarinhos. Até o sabiá deu graças pelo dia que se levantava e todo mundo parou para escutar.
O amanhecer daquele dia foi lindo no largo... Mas toda a cidade, todo o mundo, cada pessoa precisa amanhecer.
A tal “classe média” não detém os meios de produção de riqueza. Ela não é a elite global. Mas tem televisão e medo de proletarização. Medo de ficar pobre. Tem fobia de pobre e de pobreza. Por isso aprova a violência do Estado (cão de guarda do capital).
Nalguns lugares do mundo, a tal “classe média” acordou... Talvez tarde demais. Depois da farra vem a ressaca. Como eu sempre faço questão de lembrar: a Espanha estava “bombando” nos anos 90, fazendo até Olimpíadas; a Grécia estava bombando nos anos 2000, fazendo até Olimpíadas. Elas também viveram seu “espetáculo do crescimento”, com gente se endividando e consumindo mais supérfluos na maior empolgação. A quebra, a proletarização pode acontecer com qualquer um. Por isso talvez a tal “classe média” não devia tratar com tanta indiferença a violência que os mais pobres sofrem hoje.
Aconteceram eleições na maior cidade do hemisfério. Nalgum filme alguém disse que “é sempre mais escuro antes de amanhecer”. Então, se por um lado é assombroso que o coronel Telhada tenha sido eleito vereador e André Caramante, repórter da Folha de S. Paulo, que assinou a matéria título “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”, tenha que ter deixado o país devido às ameaças que vinha recebendo de policiais criminosos e simpatizantes, por outro lado talvez deva se comemorar a vitória da negação ao sistema nas eleições municipais.
O não voto (brancos+ nulos+ abstenções) chegou em primeiro lugar nas eleições para prefeito, com 28,9%, na frente do Candidato A (21,87%) e do Candidato B (20,61%). O não voto não é fruto de uma alienação política; ao contrário, é reflexo de um desejo consciente de parte considerável da população de deslegitimar esse sistema.
É justo que a legitimidade do Estado e o seu próprio reconhecimento venha a ser problematizado, quando o direito à própria existência da pessoa humana vem sendo negado por esse sistema político que diz representar as pessoas.
No entanto, é necessário ir além ainda da negação e de todos os filósofos materialistas. É preciso ir além da consciência de “consumidor”, mas depois é também preciso ainda transcendente o entendimento sociológico de classe social e começar a enxergar um ao outro, todas as pessoas, como irmãos. E, a partir de então, criar formas mais autônomas e livres de vida baseada na colaboração, e não na violência e competição. Então amanhece, e toda favela vira um quilombo de felicidade invejável.