Semana passada rememoramos o Dia da Pátria, no aniversário do dia em que um mesmo príncipe que já regia se declarou imperador, mudando as coisas de um jeito em que tudo permanecesse igual. Nosso mito fundante do “grito do Ipiranga” não diz muita coisa sobre quem somos nem conta uma história da qual nós ou nossos antepassados tenhamos participado. Quem (n) os fez “livres” não foram aqueles que sempre resistiram e lutaram por liberdade, mas justamente um jovem príncipe representante da nobreza que sempre (n) os acorrentou. Na verdade, no dia 7 de setembro Portugal é que foi libertado daquela velha coroa que havia 14 anos residia na parte do império que fica a baixo do Equador.
Tenho pensado sobre o que seria ser brasileiro, se não é exatamente verdadeira a história que contam sobre a data de nascimento do Brasil. Ser brasileiro é ser um tipo de latino-americano. O brasileiro, embora haja exceções, é basicamente o latino-americano lusófono ou, melhor, o latino-americano cujos países (regiões de geografia e cultura próprias) e vidas estiveram/estão sob o domínio dos impérios português e brasileiro. Nesse sentido, um gaúcho e um xinguano são igualmente brasileiros.
Lembro de uma reflexão dos tempos de faculdade de meu então professor, o historiador Jean Marcel Carvalho França, sobre a palavra que usamos como gentílico: brasileiro. Não brasiliano, brasilense, brasilino ou brasilês, mas brasilEIRO. Usamos um sufixo que não é de origem, mas de ofício: tal como pedreiro, jardineiro, fazendeiro ou roqueiro. Brasileiros eram aqueles que cortavam o pau-brasil para entregar (a preço de banana) aos atravessadores europeus no começo da ocupação branca dessa porção da América (por franceses, holandeses espanhóis e, principalmente, portugueses - que acabaram levando a melhor por aqui). Ainda somos (e seremos) chamados assim por uma denominação que nos remete muito mais à condição de servidão e exploração do que a pertencimento.
Mas existe um outro Brasil que nasce justamente da reação e da resistência a esse primeiro Brasil enquanto império, enquanto subsistema do capitalismo (sempre em transformação), enquanto aparelho burocrático estatal usado para manter o poder das classes dominantes. Esse outro Brasil surge exatamente da resistência à situação de ser tratado como brasilEIRO. A isso podemos chamar também de Brasilidade.
A Brasilidade é a reação à ação. De força igual, mas em sentido contrário. Algo que demonstramos muito nas artes, mas vai muito além disso.
Ser brasileiro poderia simplesmente ser vítima do Brasil, ter o Brasil como pátria. Poderia ser simplesmente estar sob o jugo de um mesmo império e atravessadores de (pau) Brasil. E que diferença faz se os tiranos-mor vivem a maior parte do tempo em Lisboa, Madri, Salvador, Rio de Janeiro ou Brasília?
"Banho de lago na favela", de Tânia Azevedo |
Mas ainda bem que existe também a Brasilidade, a condição de ser filho da mátria, além de ser filho da pátria. Isso pode ser no sentido de filho da Terra (de alguma porção de planeta Terra infectado por esse império específico), como pode ser no sentido de ter um sentimento de pertença a qualquer uma dessas culturas regionais e específicas diversas que se vêm atacadas pela imposição de uma mesma cultura hegemônica, criada para justamente facilitar o espólio da Terra e dos filhos dela.
A Brasilidade consciente é quando se percebe, mesmo não sendo um fulni-ô, que a mão que acelera o trator - o trator sobre a mata-santuário em que eles vivem - é a mesma que aperta gatilhos nas periferias das metrópoles, que joga venenos nos campos, que espreme como limões trabalhadores em fábricas, ônibus e hospitais lotados, que rouba aqui e ali, mais longe e mais perto, muitas vezes usando os aparelhos burocráticos estatais e privados. Frutas diversas num mesmo liquidificador, cujas lâminas são espadas como as de Anhanguera e do Duque de Caxias. Mas os brasileiros filhos da mátria resistência também podem dançar juntos, ao som que eles próprios criam (separados ou em eventuais encontros coloridos).
É uma contradição interessante essa de sermos todos brasileiros por não querermos ser brasileiros (no sentido de vítimas do Brasil). Nesse sentido mais profundo de ser brasileiro dá para ser gaúcho (ou paulista ou quilombola ou indígena ou crioulo) e brasileiro ao mesmo tempo. Sem se submeter a ser brasileiro de ninguém, de nenhum atravessador.
Ter Brasilidade é ter a solidariedade e respeito (que levam a um outro tipo de união) ao brasileiro diferente, sem necessariamente perder o amor e a identificação com sua(s) “tribo(s)” e/ou o chão em que vive sua comunidade. Por “chão” e “comunidade” podemos entender como incluindo também os rios, montanhas e também os outros seres que dividem conosco esse chão.
A Brasilidade, que é diferente do patriotismo estúpido, é um ensaio de humanidade nesse pedaço de América do Sul.
Sou contra a exportação, abate, criação de animais para corte e alimentação até dos deuses, quanto mais dos homens e dos próprios bichos.
ResponderExcluirMas sou Brasil, sou esse tudo de bom que está tão brilhantemente traduzido em sua matéria.
Sou Brasileira, portadora de Brasilidade, ensaio de humanidade aqui, e agora, e sempre.
Muito grata por esta leitura deixo meu abraço mais brasilis.
Bom deveríamos ter pelo menos metade da capacidade de protesto dos londrinos!!!
ResponderExcluirtexto excelente!!!!!!!
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ResponderExcluirVer minha pintura acrílica sobre tela em estilo Naif neste blog simbolizando nossa brasilidade me emocionou profundamente,pois é o que busco retratar com ingênuidade, e cores vivas em minha pintura, ou seja,a valorização do ser humano em harmonia com a natureza e tudo em nossa volta, incluindo o contexto social de cada grupo e onde vive respeitando seus costumes e suas raízes...
ResponderExcluirParabéns pela profundidade do texto que com certeza nos fez refletir muito e obrigada por ter escolhido a minha obra primitivista para mostrar um pedacinho da nossa Brasilidade...