Desde junho de 1964 a “bagunça” se repetia todos os sábados. Ao redor da estátua do Moleque de Rua, uma multidão se reúne para celebrar. São jovens empregados do porto, desempregados, cabeludos, beatniks, vagabundos, estudantes, fumadores de maconha, anarquistas, pacifistas e também gente que simplesmente não tinha nada melhor pra fazer aos sábados e resolveu ir ver o tal maluco do turbante. Um feiticeiro africano de cara pintada recita mantras contra o consumismo, a indústria do cigarro, os automóveis, a bomba atômica e tudo mais que lhe vem à cabeça.
Então ela chega, carregada no alto pela multidão em êxtase, da mesma maneira como carregam os santos nas procissões católicas. Ela: a primeira bicicleta branca.
No happening convocado pelo boca a boca e por panfletos e fanzines independentes, aqueles jovens e o maluco artista performático Robert Jasper Grootveld (o falso feiticeiro africano) estavam começando o grande sacolejo no pensamento ocidental que sacudiria o mundo nos anos 60: a contra cultura. Em vez de “cair fora” como os beats norte-americanos, eles decidiram participar diretamente da vida de sua sociedade. À sua maneira, mesmo que pudesse parecer excêntrica, tinham propostas reais para sociedade.
O plano das bicicletas brancas, elaborado por Laurens (Luud) Maria Hendrikus Schimmelpennink, tinha um pouco de Ghandi, um pouco de dadaísmo e um tanto de inconformismo com a falta de espaço. Nos anos 60 os automóveis já eram a principal causa de morte entre a população jovem. Além disso, o ar andava poluído e o trânsito e os estacionamentos haviam tomado todo o escasso espaço público das cidades dos países baixos. Os “cabeludos” chegam a escrever à Prefeitura de Amsterdam pedindo apoio para o projeto que consistia em espalhar milhares de bicicletas brancas públicas pela cidade. O trânsito para automóveis deveria ser fechado para o tráfego de automóveis. Quem quisesse usar uma bicicleta branca deveria simplesmente pegá-la, usá-la e deixá-la em algum canto para o próximo que precisasse. A Prefeitura sequer respondeu a carta. Mas os “provos” (provocadores), como ficou conhecido o movimento (que também seria a ponta de flecha para a futura aprovação do casamento guei e da descriminalização da maconha naquele país), convocavam quem quisesse doar suas bicicletas para o bem comum que comparecesse ao happening de Grootveld para que ela fosse pintada de branco.
Outra ação consistia em criar o hábito entre os jovens de pedalar na contramão, atrapalhando o tráfego de carros. Além disso, havia o “plano do cadáver branco”, que consistia em desenhar de forma indelével nas ruas o contorno do corpo de cada vítima fatal do trânsito, de modo que ninguém se esquecesse da real dimensão da ameaça da violência do trânsito. Os mais “esquentadinhos” organizaram grupos de vingadores, prontos para pichar e arranhar carros com escapamento desregulado, apressadinhos e atropeladores. Se torna hábito passar por cima de carros parados sobre as faixas de pedestre. Mas a celebração na pracinha com a estátua do moleque.
“Ainda hoje Amsterdam é a cidade do mundo ocidental mais respeitosa com os próprios ciclistas e mais punitiva com os motoristas”, afirma Matteo Guarnaccia, em seu "Provos: Amsterdam 1960-67 - gli inizi de la contracultura" (lançado no Brasil pela Editora Conrad). Mas até chegar a isso, muita gente iria apanhar... E rir.
Os “happenings” noturnos (mistura de teatro, brincadeira coletiva e protesto político), comandados pelo multicolorido palhaço feiticeiro, são reprimidos violentamente pela Polícia, que alega que isso “atrapalha o trânsito”. Mais de 50 bicicletas brancas são apreendidas (roubadas) pela Polícia, que afirma que a ausência de travas e cadeados nas bicicletas encontradas “abandonadas” eram um incentivo ao furto. Em resposta, bicicletas da Polícia aparecem pintadas de branco. O bixo pega, mas a Polícia não sabe o que fazer contra os “maconheiros metidos a Gandhi” que se deixam prender (até não ter onde mais botar gente) e, em vez de correr ou revidar, gargalham e imitam galinha quando a força policial chega com sabres, gazes e cassetetes.
A febre “provo” se espalha pelo mundo. Bicicletas brancas e happenings surgem na Espanha, na Bélgica, na Itália. A música exalta esses precursores do ambientalismo moderno até nos Estados Unidos.
Hoje em Amsterdam, bem como em Sevilha ou Barcelona, basta fazer carteirinha para usar os serviços públicos de bicicleta (o Estado se rendeu à boa ideia dos anarquistas) e deixá-la em qualquer outra “estação”. Quem não devolve a bike dentro de determinado tempo toma multa e é suspenso, mas isso não acontece com frequência. Há ciclovias e serviços de bicicletas públicas ou de aluguel simbólico em Paris, Estocolmo, Oslo, Denver, Helsink, e a maioria inaugurados tardiamente, nos anos 2000, mas de inegável inspiração holandesa sessentista, só levadas a cabo agora que o CO2 bateu no selim.
Bicicletas brancas também se espalham pelas ruas do México, mas lá elas são monumentos fixos onde ciclistas foram atropelados.
Além das bicicletas, a ideia de criatividade e a proposta (não só a reclamação) nos protestos é o maior legado dos “provos” (antecessores de qualquer hiponga e qualquer punk). Tanto que até hoje a tribo dos ciclistas é que promove as manifestações mais criativas, como a “pedalada pelada”, e, mesmo quando em pequeno grupo, conseguem grande visibilidade para suas causas. Fazendo-se ouvir apesar do forte lobby da indústria automobilística.
Leitores. É claro que o espaço dessa coluna é limitado e o objetivo é despertar o debate e o interesse pelos temas abordados. A revolução Provo foi muito além do Plano das Bicicletas Brancas e deixa várias lições à juventude do século XXI. Deixo a dica do livro "Provos; amsterdam e o nascimento da contracultura"(OK, M. T. Mhereb, eu sei que estou com o seu emprestado. Te devolvo mês que vem, quando eu voltar a São Carlos ;-) ) e um vídeo do criador do plano das bikes brancas.