sábado, 19 de fevereiro de 2011

Uma Revolução (ou reforminha) para chamar de "sua" (1)

Políticos e analistas políticos tentam entender o que está acontecendo na África e Oriente Médio. No fundo temem que essa “coisa”, seja lá o que for, se espalhe demais. Diante de algo completamente novo, todos os establishments reagem da mesma maneira: tentam pregar a sua interpretação para a revolução, querendo colar a sua estampa nela.

No Irã dos aiatolás dizem a Revolução da Juventude, no Egito foi uma Revolução Islâmica.

Enquanto isso, lideranças comunistas dão a interpretação canônica de livros sagrados do marxismo ortodoxo.

Já nos Estados Unidos, saúdam a vitória da democracia, como se alguém ainda acreditasse que os valores da democracia estejam representados na máquina política bipartidária dos EUA. Os Chavistas dizem que é uma rebelião contra o Império Americano.

No Feudalismo, a submissão de vassalos jurando
lealdade e defesa dos soberanos em troca de
beneficios e lotes garantia a reprodução,
por séculos, do sistema
E no Brasil não poderia ser diferente: na blogosfera, petistas mais apaixonados pelas cores de seu time comparam o levante egípcio à eleição de Dilma no ano passado.

Todos querem uma revolução para chamar de sua. Mas Sarney é mais esperto, ele sabe tudo o que ele precisa, é só de uma reforminha. Ele sabe que, de reforminha em reforminha, o Brasil mantém relações de poder e práticas políticas medievais. E nesse momento em que se fala de reformas e revoluções é preciso provocar a reflexão sobre nossa própria História, terceirizada História.

No Antigo Regime, o rei, o suserano, dava pedaços de terra aos seus vassalos (aliados, subalternos, cupinchas) em troca de lealdade e favores. À “descoberta” de terras no amanhecer do século XVI, por exemplo, sucederam-se as doações de enormes nacos de terra a vassalos da coroa portuguesa. E é dessa “legitimidade” que provém a maioria dos latifúndios existentes até hoje. Outros vieram ou cresceram depois, via grilagem, tomada de terras de pequenos posseiros endividados, mas sempre de forma atrelada a práticas injustas, baseadas no tripé: troca de favores, violência e controle da informação.

Na cerimônia do "beija mão" as pessoas faziam pedidos ao Principe
Regente, Dom João VI. A rainha, Dona Maria, não mandava nada
Olhemos rapidamente sobre alguns momentos de “transição” de nossa história: a vinda da família real em 1808 e elevação do Brasil a Reino Unido. Sim, houve progressos, mas em termos de relações políticas e sociais, há aí um aprofundamento dessa política de troca de favores, de loteamento e doação de lotes. Não podemos nos esquecer, por exemplo, que com toda a modernização e embelezamento do Rio de Janeiro vieram junto 15 mil nobres e que para alojá-los o Príncipe Regente simplesmente despejou um monte de gente de suas casas. Simples assim: “Sai da casa que você levantou, agora, porque sua Alteza quer ela para colocar seus amigos”. Importamos a monarquia que estava saindo de moda na Europa (como fazemos com quase tudo sai de linha no exterior), aprofundando práticas políticas antiquadas e injustas. Além do mais, quem pagou e trabalhou pelos progressos?
Imagem de 1840 mostra o "Grito do Ipiranga".
Cadê o povãocomemorando a "Independência"?
Não tinha mesmo
A “independência” do Brasil também não trouxe nem a abolição da escravidão nem a distribuição justa de terra e poder. No dia 8 de setembro de 1822 o país continuava governado pelo mesmo Dom, só que a partir de então ainda mais absolutista. Continuava a haver um governo a usurpar das pessoas, escravas e “livres”, o direito de se governar. Nova mudança para manter as coisas como eram.

O mesmo se deu com a Proclamação da República. Ela não nasceu de um movimento popular como os da primeira metade do século XIX, não teve suas raízes nos movimentos que defendiam essa forma de governo por considerá-la mais justa. Pelo contrário, quem proclamou a República no dia 15 de novembro de 1889 foram os latifundiários, com o apoio do Exército (que outrora matava republicanos). Mudaram as regras do aparato burocrático justamente para evitar que as coisas mudassem de verdade. Como já comentei em outro artigo e já comprovou o historiador Eduardo Silva, da Fundação Casa de Rui Barbosa, a princesa Isabel, herdeira do trono, pretendia realizar uma vasta reforma agrária a fim de “colocar estes ex-escravos, agora livres, afrodescendentes em terras próprias, trabalhando na agricultura e na pecuária e delas tirando seus próprios proventos” (carta da princesa de 11/8/1889 ao Visconde de Santa Vitória).

Após expulsar os brasileiros D. Pedro e
Isabel do país. Militares e fazendeiros
celebram a Proclamação da República.
O povo não estava na Praça
(quadro de B. Calixto, 1893)
Quando foi redigida a Constituição do Império de 1824, ninguém imaginava que, no futuro, o herdeiro do trono seria uma mulher e, além de tudo, progressista. Em 1889 faltavam quatro anos para o pai dela, Dom Pedro II, chegar à idade máxima quando deveria abdicar. Ela poderia virar imperatriz antes ainda, caso o imperador falecesse. Os donos de terra derrubaram a monarquia antes que isso acontecesse, afinal, num curto período de suplência durante uma viagem do pai a princesa libertara os escravos no ano anterior. A República proclamada em 1889 não era democrática nem justa, mantinha antigos privilégios e quem não era rico nem homem não podia votar e quem não era muito, muito rico não podia ser votado.

O Estado concedia aos grandes proprietários de terra a patente de Coronel da Guarda Republicana, como uma maneira de legitimar seu poder local. A concessão da patente de coronel equivalia na República a uma condecoração com um título de nobreza. A lógica da troca de favores e cargos continua. Foi aí que “coronel” virou sinônimo de aristocrata agrário.




Assim se desenvolveu a República até hoje. Sempre que o país caminha para alguma mudança rumo à justiça e à liberdade, os velhos donos do poder maquinam para que tudo continue como está. O golpe de 1964 é um dos exemplos mais claros. O golpe foi chamado de “militar”, mas foi um golpe das classes dominantes para evitar transformações profundas planejadas por Jango (reforma agrária, educação universal, etc).

Mas os obscuros acontecimentos de 1985, da “Redemocratização”, e de depois deles precisam sempre ser também relembrados.
Continua semana que vem.
Parte 2
Parte 3 

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