- no dia 15 de janeiro de 1985, Cazuza se apresentava como vocalista do Barão Vermelho no Rock'n Rio para uma plateia em festa pela vitória do primeiro presidente civil em 20 anos. No colégio eleitoral, o bloco dos que haviam defendido as diretas e indicara Tancredo se aliou ao grupo de José Sarney, que havia sido aliado do Regime militar até seu último suspiro, para vencerem Paulo Maluf, o candidato indicado pelos generais. Havia um grande clima de expectativa com o processo de transição.
Em vários momentos da nossa história, transições institucionais não significaram mudanças estruturais na sociedade brasileira. Pior, muitas dessas “transições” foram fruto da engenharia política daqueles que já estavam no poder de modo a evitar que o povo protagonizasse a história. A manutenção dos graves problemas e injustiças do país sempre foi garantida pela manipulação da informação, troca de favores políticos e violência.
Obviamente houve resistência, sempre. Essa resistência, que passa pelos quilombos, por revoltas do período regencial, pelo abolicionismo, pelas greves dos operários paulistas de matizes anarquistas da primeira metade do século passado, pela oposição armada e desarmada aos regimes ditatoriais, por pastorais, sindicatos e até, em certa medida, partidos políticos.
A redemocratização do Brasil nos anos 80 trouxe inegáveis avanços políticos e sociais ao Brasil. Mas chamar a atenção para graves questões estruturais que permaneceram inalteradas não é desqualificar o que foi conquistado. É, ao contrário, lembrar o que ainda está por fazer dando continuidade e profundidade ao processo. Além do mais, esse artigo não pretende encerrar nenhuma questão, mas, ao contrário, reabrir algumas que estavam mal fechadas.
Temos que lembrar que em meados dos anos 80 o povo foi às ruas pedindo eleições diretas para presidente da República. Mas os militares que a serviço de setores abastados da sociedade haviam tomado o poder à força 20 anos antes queriam uma transição “lenta e gradual”, e no fim o povo se contentou com eleições indiretas para a escolha do primeiro presidente civil em 20 anos. O povo elegeu deputados que por sua vez elegeriam o presidente.
Em princípio os militares queriam a vitória do candidato Paulo Maluf, impopular até mesmo entre os outros aliados do regime e que não tinha vitória nenhum pouco garantida. O oligarca maranhense José Sarney, na política desde os anos 50, que havia sido governador do Maranhão pela graça de Castelo Branco, costura então um acordo. Ele funda o Partido da Frente Liberal (PFL) - atual DEM - e leva consigo outros aliados da ditadura também insatisfeitos com a indicação de Maluf. O PFL propõe ao PMDB, o partido que acolhia a oposição institucional, um balaio de gato. Sarney seria vice de Tancredo de Almeida Neves, do PMDB, numa aliança que derrotaria Maluf no colégio eleitoral.
Naquela noite de 1985 o jovem Agenor Araújo Neto se apresentava como vocalista do Barão Vermelho no histórico Rock in Rio 1. Feliz com a vitória de Tancredo, o poeta conhecido como Cazuza comemorava cantando abraçado a uma bandeira do Brasil a eleição de Tancredo, o primeiro presidente civil em décadas. “Que o dia nasça lindo pra todo mundo amanhã, pra um Brasil novo, pra uma rapaziada esperta!”, gritou ao fim de “Pro dia nascer feliz”.
Mas misteriosamente em 14 de janeiro de 1985, véspera da posse, Tancredo adoece subitamente e é internado às pressas. Complicações cirúrgicas viriam a agravar seu estado. José Sarney, representante das velhas oligarquias do Nordeste, é quem toma posse em seu lugar. No feriado de Tiradentes do mesmo ano, Tancredo morre, segundo as fontes oficiais da época, vítima de uma bactéria no estômago. Uma bactéria ou forças ainda mais asquerosas atuando no destino do Brasil de modo a fazer com que aquele que conduziria a redemocratização não fosse eleito por voto direto nem indireto. Mas isso fica para a semana que vem, quando concluiremos este papo.
- Na música Ideologia, de 1988, Cazuza demonstra a frustração de uma época. Naquele ano, apesar de avanços trazidos pela nova Constituição, muita coisa deixava a desejar em termos de transformações estruturais. Além disso, o então presidente José Sarney conseguira adiar as eleições para o ano seguinte em troca, basicamente, de concessões de rádio e TV. Em nível global, havia a crise do bloco socialismo que se desmanchava no ar.
Análise da Cobertura da Rede Globo sobre o comício das Diretas na íntegra
- O primeiro ponto a ser destacado é o fato de a Globo sequer ter dedicado uma matéria específica para o Comício que reuniu mais de 300 mil pessoal pedindo reformas democráticas e eleições diretas para presidente ainda naquele ano. Coincidentemente o comício aconteceu no dia 25 de Janeiro de 1984 (data que em 2011 seria marcada pelo inicio das manifestações contra o regime de Mubarak no Egito e que teve a juventude como vanguarda #Jan25) dia do aniversário de São Paulo. A Globo fala do aniversário de São Paulo e da USP até metade da matéria para só no último minuto começa a falar comício.
- A missa na praça da Sé já foi o começo das manifestações daquele dia, mas a Globo edita a matéria e a entrevista de modo a mostrar como antagonizantes: religião e a "baderna" pró democracia.
- No trecho sobre a USP, notem como a globo enaltece a universidade que tanto sofreu com a interferência dos regimes militares, e chama a manifestação dos estudantes de "inesperada", como se não houvesse do que reclamar.
- O comício das Diretas no centro de São Paulo era o ápice de um movimento que tomava acontecia em diversos pontos do país mas a Globo mostra como se fosse tudo parte das comemorações do aniversário da cidade. Ela minimiza a importância política do evento dando destaque aos artistas que apoiavam a causa, como se as pessoas estivessem lá só pelos artistas.
- Apesar de naquele dia diversos oradores terem feitos discursos sobre justiça social e reformas democráticas profundas que passavam também pelas eleições diretas naquele ano, a Globo opta por usar um trecho do discurso do moderado Franco Montoro, que em vez de falar sobre o que está por ser feito, simplesmente enaltece o que já foi feito. Tal edição transmite a idéia de que ter a figura do presidente eleito pelo povo era a única reforma necessária ao país.