Jornal do Povo, Cachoeira do Sul-RS. edição de 27/11/2010
Ela morreu em novembro de 2010, aos 14 anos, estudando, na favela em que vivia com a família
Ela morreu em novembro de 2010, aos 14 anos, estudando, na favela em que vivia com a família
Com medo de bala perdida, mães correm de mãos dadas aos filhos rumo à escola | Foto: Alexandre Vieira / Agência O Dia |
por Leandro Cruz
Gente de monte, como formiguinhas, deixando suas casas rumo a campos de refugiados (escolas e quadras). Gente correndo. Gente com medo. Gente chorando. Gente morrendo. Gente empolgada com o espetáculo. Gente angustiada. Tinha também helicópteros. Blindados. A Marinha participando da ocupação de um bairro da Antiga Capital. Rio, a um mês do Natal de 2010 d.C.
Foto do século XIX mostra africanos que continuavam a ser traficados pelos brancos para trabalharem como escravos no Brasil; a Marinha fazia vista grossa |
Num canal da TV debatem os impactos da crise para a economia. Estão preocupados com o dinheiro que os patrões não ganharam porque nessa quinta-feira muitos trabalhadores não compareceram no emprego. Falam das bolsas, da imagem do país lá fora. O outro canal mostra horas e horas contínuas de transmissão ao vivo, como se tudo não passasse de um Counter Strike real, só que narrado por algum apresentador mais empolgado que o Galvão Bueno.
Numa matéria curta, citam o nome de Rosângela Alves, uma menina de 14 anos que foi morta dentro de casa. Ela estava estudando... Ela nem viu sua "hora da estrela". A nota sobre as pessoas tem poucos segundos. Logo entram os comerciais.
Família de Rosângela Alves Barbosa, 14 anos, morta durante ocupação da Vila Cruzeiro |
A TV repete pela boca dos anunciantes e das autoridades: continuem trabalhando e consumindo normalmente. Volta a imagem de helicóptero. Corta aqui. Corta ali. "Olha ali na laje: os bandidos!". Entra uma matéria de "recapitulação" em que o repórter diz: "O confronto entre as forças do Estado e os bandidos no Rio começou na última semana, quando integrantes de facções criminosas iniciaram uma série de ataques a batalhões da Polícia, além de atos de terror como o incêndio de dezenas de carros pela cidade".
Acho bem estranho essa cobertura. Quando há guerra em outros países, em lugares distantes, a mídia acaba mostrando, pelo menos um pouco, as raízes históricas do conflito. Durante a segunda intifada, por exemplo, falaram, ainda que de passagem, do significado da Mesquita de Al Aqsa, do Plano de Partilha da ONU, da Guerra dos Seis Dias e da do Dia do Perdão. Em programas mais aprofundados, falaram de como os romanos destruíram Jerusalám, do Holocausto e, de passagem, do Sionismo.
Eu não consigo entender uma coisa: quando a guerra é aqui no Brasil, o retrospecto começa a partir da semana passada. Como se tudo tivesse começando agora. Meu pensamento volta para Rosângela. A foto dela apareceu na TV por menos de cinco segundos. Disseram que, quando a bala atravessou seu peito, ela estava estudando. Não deram detalhes. Penso: “Será que ela estava estudando História?”. Será que deu tempo de ela chegar até que parte? Será que ela entendeu onde estava inserida historicamente antes de morrer. Será que ela leu sobre como seus ancestrais vieram parar no Brasil?
Será que ela chegou na parte em que a herdeira do trono libertou os escravos e começava a traçar um plano de reforma agrária para assentar os ex-cativos, mas aí veio o Exército a serviço dos “donos” de terra e dinheiro (ex-donos das pessoas pretas), no novembro de 1889, e botou a princesa pra correr com seu pai e suas ideias? Será que ela chegou na parte que Exército e ricos, se revezando no poder, começaram importar pobres de outras partes do mundo para trabalhar, deixando os ex-escravos e sua descendência sem espaço no sistema produtivo dominante? Será que ela chegou na parte em que esses negros, sem terem para onde ir, foram tentar achar um canto na capital da República recém-declarada e aí acabaram se amontoando em casas e até estrebarias chamadas de cortiço? Será que ela chegou na parte do governo Rodrigues Alves e da reforma urbana do Rio, que demoliu os cortiços e levou seus ex-moradores a construírem barracos nos morros no começo do século passado?
Será que, antes de Rosângela ser morta, ela aprendeu sobre um certo presidente vindo do Sul que discursou na cidade dela, falando de redistribuição de riqueza e dos meios de produção (igual planejava a princesinha), mas aí vieram o Exército e os donos da riqueza e derrubaram o cara? Ela devia ser uma menina esforçada. Estava estudando enquanto acontecia um tiroteio. Será que era para mudar as coisas no lugar onde vivia? Será que era pra sair dali? O fato é que, se ela continuasse estudando, poderia juntar as partes do quebra-cabeça.
Muitos dos meninos da idade dela não entenderam a história e pegaram em armas sem entender de onde vem o tiro. Os soldados do morro morrem cedo. Muitos não chegam aos 20 anos ou na página 20 do livro de história. Pegam em armas para inserir-se na lógica econômica do mundo em que vivemos. Pegam em armas por seus patrões, os traficantes, que na verdade são agora só mais um grupo de capitalistas dentro desse sistema econômico, mas fora da legalidade. Então eles pegam em armas para terem dinheiro, comida, drogas, tênis importado, MP3, a admiração das pessoas. Enfim, os marginalizados que não entenderam a história só querem ser burgueses, pois eles não chegaram até a página ou o dia em que entenderiam de onde vem o tiro.
Como agora vão dizer que o problema é simplesmente a droga, disseram que o problema 100 anos atrás era simplesmente a vacina. Penso que, ainda que tivesse tido tempo de ler o livro todo, Rosângela não encontraria uma página falando de quando o Exército e os donos da riqueza, que haviam derrubado a tal ideia da redistribuição mais uma vez, começaram a mandar passadores de maconha, ladrões, assaltantes e vendedores de Rolex (contrabandeados, falsificados ou roubados),
quase todos pretos, para o presídio da Ilha Grande. Não é que arrancaram a página, é que simplesmente não devia estar no livro, porque não cai no Enem que na Ilha Grande eles foram torturados. Mas aí - também não devia dizer o livro - os presos comuns aprenderam com os presos políticos a se organizarem, se unirem, terem um caixa comum, fazerem ações coletivas e colaborativas.
A Ilha Grande foi uma escola - de estratégia de guerrilha e organização. Mas pelo jeito não ensinaram a história. Erro fatal dos presos políticos. Num raro encontro entre intelectuais e miseráveis, não lecionaram de onde vinha o tiro. Será que Rosângela, morta na última quinta, aos 14 anos, durante a tomada pelos militares da favela em que morava, chegou na página que falava da volta da democracia nos anos 80? Se chegou, pode não ter entendido que os donos das coisas só deixaram eleições aconteceram quando viram que dava pra continuar no poder simplesmente não contando a história toda na TV, nem deixando as pessoas aprenderem estudando.
Deu tempo de Rosângela entender onde ela estava na história? Deu tempo de ela entender que não existe bala perdida, que todas vieram de algum lugar... De algum lugar do passado? Sei que não deu tempo de ela ler no jornal as autoridades declarando “Vila Cruzeiro agora é do Estado”. E não deu tempo de ela levantar a mão e perguntar: “Professora, de quem é o Estado?”.