domingo, 30 de outubro de 2011

A Ponte dos Milagres



Aos poucos, mas cada vez mais aceleradamente, o Viaduto do Chá vai se transformando. O decadente Centro de São Paulo vai ganhando vida novamente. É difícil imaginar aquele lugar séculos atrás, quando um rio passava por ali e o espírito das águas (Anhangabaú) vivia no fundo do vale. Penso no sangue indígena e negro derramado, nos operários que colocaram cada uma das pedras que pavimentam o vale. Tento imaginar aquele local lotado de gente de camisa amarela pedindo eleições diretas em 1984, quando eu ainda era uma criança e o Brasil não escondia ser um país ditatorial. Penso nos tantos casos de suicídio; o Viaduto do Chá sempre foi o local preferido dos desesperados que decidiram por fim à sua amarga existência. Penso que há bem pouco tempo atrás o viaduto, bem ao lado da Prefeitura construída pelo mesmo arquiteto de Mussolini, era um local onde sem-tetos se abrigavam da chuva até que forças policiais começaram a caçá-los. Alguns moradores de rua que se juntam ao acampamento pacifista revolucionário contam que à noite caminhões pipa os expulsou com jatos d'água em madrugada fria. Dona Cida conta como a mesma Guarda Civil Metropolitana destruiu sua banca de camelô e depois tentou colocar fogo nela viva enquanto dormia na rua.
Aulas públicas. Ocupa Sampa tem a universidade na Rua 

Mas há duas semanas as coisas começaram a mudar, quando indígenas, anarcopunks, artistas plásticos, professores, hackers, iogues, devotos de Krishna, padres, xeiques, sociólogos, músicos, advogados, estudantes, jornalistas e toda sorte de gente começou a chegar com suas barracas com o intuito de afrontar o sistema. Resistindo às ameaças da GCM e gangues neonazistas, ao frio da madrugada e outras adversidades, já temos biblioteca, coleta seletiva, horta (com espantalho e tudo), salão de cabeleireiro ao ar livre, um cineminha, uma cozinha equipada (capitaneada por chef argentino e outro pataxó), geração de energia. Um dia passamos o chapéu e cada fumante deu quantas moedinhas podia para comprar tabaco orgânico no famoso Mercadão. Enrolando nossos próprios cigarros, boicotamos o agronegócio, os agrotóxicos, as corporações estrangeiras, os impostos pagos a esse Estado que não nos representa; colocamos menos bitucas não-biodegradáveis no ambiente.
Professores da PUC, USP e Mackenzie já apareceram para ministrar aulas abertas ao público e transmitidas ao vivo pela internet. “Universo Cidade Livre” é como chamamos a nossa universidade, da qual todos, todos mesmo, podem participar.
Depois de passar um tempo na floresta você entende muita coisa sobre como nosso planeta era originalmente; sente muita coisa além da paz, do ar limpo, do silêncio da observação do equilíbrio com outros seres e com o ser maior que é a própria Terra. Chegar à babilônia paulistana é um choque, mas, como todo ser vivo, a Terra precisa de células de defesa que vão atuar bem no meio da ferida, da doença, do câncer, para transmutá-la. Já viu o planeta visto do espaço? As cidades de fato parecem cicatrizes podres no rosto da Mãe.
Só uma nova política, uma nova cultura, um novo sistema podem salvar as pessoas, pois quando a Terra está doente as pessoas ficam doentes. A contracultura é tão importante quanto os discursos e faixas pedindo democracia direta (em que cada pessoa tem o direito de participar e decidir tudo, não deixando essa tarefa concentrada nas mãos de um pequeno grupo: o dos políticos profissionais que defendem apenas os seus próprios interesses e os dos milionários que financiam suas campanhas).
Nos primeiros dias ninguém sabia que estávamos aqui e as pessoas tinham medo de andar por esse espaço durante a noite. Agora, jovens chegam com megafones, sonhos e violões para se divertir, fazer revolução e dormir entre moradores de rua. O caminhão de lixo passa à noite e os trabalhadores pendurados nos caminhões nos saúdam como se sentindo parte disso, coparticipante de indignação e esperança. As decisões são tomadas em assembleias e percebemos que, de fato, unidos podemos fazer as coisas bem melhor que os políticos.
Penso nas tribos indígenas e comunidades quilombolas que conheci nos últimos meses. A floresta está pronta para a resistência, do Xingu ao Cerrado, da Caatinga à Mata Atlântica, esses povos estão prontos para dizer “basta”, “não passarão”. Na zona rural, camponeses sem-terra começam a questionar lideranças que se aliam ao partido do governo que se aliou a latifundiários. Se a verdade vencer a covardia, a qualquer momento militantes da velha esquerda desistirão de mentir para si mesmos que os políticos os representam e estará definitivamente deflagrada a Revolução Brasileira. Pode não acontecer, mas se acontecer (e depende de cada um) o levante brasileiro será o mais bonito, carnavalizante e plural dentre todos os que já estão em andamento no mundo. Pequenas revoluções pessoais já estão em andamento: alguns moradores de rua já abandonaram seu vício de bebida e crack. E até eu, cientificista por tanto tempo, recuperei minha fé. À noite, na barraca, lembro do velho João “Não tenhais medo” Paulo II e peço: “Velho amigo, que amou tanto essa Terra e a juventude, que unia em nosso país grandes multidões unidas pela esperança fora da Copa do Mundo, faz um milagre aqui: ajude as acampadas de São Paulo, Rio, Olinda, BH, Campinas e Floripa a se espalharem, crescerem e inaugurarem o que você chamava de Civilização do Amor”.
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OCUPA SAMPA ENTREVISTA REPORTER DA GLOBO



sábado, 1 de outubro de 2011

É só trocar o eixo que tá tudo certo?


De 15 a 19 de novembro de 1889, essa foi a bandeira provisória da República; Faz tempo que nosso Estado gosta de copiar um outro império autoritário
 
Na semana passada, forças policiais bolivianas
reprimiramviolentamente manifestações de
indígenas que protestavam contra a construção de
uma rodovia no meio de suas terras, destruindo boa
parte da Amazônia daquele país, para atender aos
interesses de corporações do Brasil imperialista
Em 2011, a farsa caminha de seu desmonte. Economias europeias entram em colapso uma atrás da outra: Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha... Também no mesmo ritmo de efeito dominó se espalham pelo mundo rebeliões contra governos e sistemas políticos: começou com o povo nas ruas de países árabes derrubando tiranias e se espalhou pela Europa com jovens questionando os pacotes de seus governos para conter a crise
causada por especuladores e pelas corporações financeiras que tomaram lentamente, sobretudo no pós-Guerra Fria, o controle dos seus estados. Aos poucos, de maneira catalisada pelas novas formas de distribuição de informação (ver também: Wikileaks, Revolução 2.0), povos do mundo começam a descobrir que os governos de seus países não são exatamente os seus governos, que esse sistema não se sustenta.
À 66ª Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente dos Estados Unidos da América chega com a consciência de que a força da voz não é nem de longe tão respeitada (e/ou temida) quanto há 10 anos atrás. Ironicamente, as boias que impedem o sistema econômico hegemônico globalizado de afundar são países até recentemente periféricos, os "emergentes" do hemisfério sul, como Brasil, Índia e África do Sul (ao lado do cartelizado estado capitalista Russo, que surgiu dos escombros da URSS e do monolítico capitalismo de estado chinês). A crise sistêmica, se ainda não levou ao colapso total da Era da Especulação, já provocou o deslocamento do eixo econômico da Terra. O ganho de força da postulação do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança tem tudo a ver com isso.

Na abertura da Assembleia Geral da ONU, Dilma
admitiu que o mundo passa por transformações que
podem levar a grandes rupturas com a velha estrutura
social e política do mundo. Mas disse querer impedir
isso, trabalhando junto com outros regimes
que também não querem largar o osso
Diante das recentes transformações no tabuleiro econômico, o poder político nas relações internacionais também se reconfigura. Ou os Brics salvam o capitalismo ou nada será como antes. Sabendo da posição privilegiada que lhe caiu no colo, os representantes dos governos dessas economias se veem em confortável situação de falar alto com os estados "submergentes".
Então cabe, pela primeira vez, a uma mulher abrir os debates da Conferência Geral da ONU. A presidenta do Brasil, ex-guerrilheira de esquerda que há poucas décadas combatia a ditadura em nosso país que era sustentada por Washington. Mas naquela manhã de setembro ela não falaria em revolução ou rompimento com a ordem hegemônica, mas em ajustes e reformas para manter o monstro em pé: “O mundo vive um momento extremamente delicado e, ao mesmo tempo, uma grande oportunidade histórica. Enfrentamos uma crise econômica que, se não debelada, pode se transformar em uma grave ruptura política e social. Uma ruptura sem precedentes, capaz de provocar sérios desequilíbrios na convivência entre as pessoas e as nações. Mais que nunca, o destino do mundo está nas mãos de todos os seus governantes, sem exceção. Ou (nós, os governos dos Estados) nos unimos todos e saímos, juntos, vencedores ou sairemos todos derrotados”.

Protestos na Espanha por democracia direta,
contra a ditadura dos bancos, eram acompanhados
de debates e propostas para uma nova ordem
O que Dilma não mencionou é que talvez essa ruptura possa ser benéfica à humanidade, caso criemos a partir das ruínas da civilização do século XX modelos mais diretos de representação e autogestão, um pós-estado que não deixasse brechas para usurpadores particulares de interesses nacionais. O rompimento só levaria à barbárie justamente se aqueles que se beneficiam do cambaleante e mentiroso sistema insistirem em “não largar o osso”. Mas como todo bom império ressurgido, o Brasil insiste em se tornar novo eixo no qual orbitem países e blocos políticos no mundo.
Gozado que um grupo surgido da esquerda latino-americana é que esteja se prestando a esse papel. Vale lembrar que ante à crise sistêmica, nossa posição de “emergente” ou mesmo “líder” não é segurança para nada. Esse choque recente de capitalismo pelo qual temos passado (que facilita o acesso ao crédito bancário e incentiva o consumo de bens não duráveis – como carne uma vez a mais por semana) pode ser tão efêmero quanto o foram o da Espanha e o da Grécia. Nos anos 90, a Espanha era um verdadeiro canteiro de obras; o país que mais crescia na Europa até organizou Jogos Olímpicos e o mesmo se sucedeu com a Grécia uma década mais tarde.
Nem estatizante, nem liberal. O modelo de jogo proposto pelos novos ricos consiste em preservar um Estado (com democracia de fachada, de preferência) para socorrer os interesses do capital privado em momentos de crise. É o capitalismo se reinventando após a trágica era neoliberal. Tática que parece ignorar que mais do que sistêmica, a crise é civilizatória (falaremos sobre isso mais adiante).
No meio disso tudo, do total rearranjo das forças políticas do mundo capitalista pós-globalização (que pode incluir até o justo e aguardado reconhecimento do Estado palestino por parte da ONU), o Brasil, novo protagonista, tenta marcar posição e, a exemplo de outras potências regionais (como Irã e Inglaterra), também esconde suas graves contradições.
Simultaneamente, enquanto Dilma fazia seu discurso histórico na ONU, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) aprovava o Código Florestal sem debater os problemas de Constitucionalidade do projeto. Eram mais de 90 emendas propostas na Comissão. O relator da CCJ, senador Luiz Henrique da Silveira (PMDB-SC) sequer leu as propostas nem quis debatê-las. Rogou a seus pares que aprovassem o relatório tal como estava. E assim foi feito. A mais importante das comissões do Senado simplesmente abdicou de fazer seu trabalho, corrigir o que fosse injusto e/ou inconstitucional, justamente nesse que é um dos temas mais importantes que já tramitou naquela casa desde a "Redemocratização". Pra que ela existe então? Por que eles são votados e pagos? Nem mesmo discutir!? Não era nosso direito (e das gerações que herdarão a Terra) que eles pelo menos debatessem as emendas?
Nos últimos meses protestos com milhares de
jovens por educação pública acontecem no Chile.
Naquele país apenas os ricos têm acesso à educação.
O governo prefere importar mão de obra qualificada
dos EUA e do Brasil do que educar seu próprio povo
Os Estados Unidos não têm um sistema público de Saúde. O Chile não tem universidades públicas. O Brasil, por sua vez, não tem sequer um Poder Legislativo público. O interesse privado, o poder econômico, parece estar acima de tudo isso. Ainda assim, Dilma falava ao mundo (e convencia boa parte dele) como se fosse a líder de um país democrático. Não é.
É verdade que o tabuleiro global mudou bastante nos últimos 10 anos, a ponto de hoje ser o Brasil quem pode emprestar dinheiro (via FMI) a países da Europa. Mas é preciso deixar claro que quem tem crescido não é o Brasil, mas a concentrada economia brasileira. Eike Batista, por exemplo, foi o homem que mais enriqueceu no mundo no ano passado e hoje sua fortuna beira os R$ 50 bilhões.
Aos brasileiros coube um aumento do acesso ao crédito. Agora está mais fácil pegar dinheiro emprestado e cada vez mais as pessoas estão financiando a longo prazo casas e carros novos. Houve também um pequeno incremente na renda, e no grau consumo, que pode muito bem ser ilustrada com o aumento de 11,7% da venda de bebidas em lata só em 2009. Mas tomar refrigerante não quer dizer que estamos participando da festa, mas para muitos cria a ilusão de ascensão social das camadas populares, mesmo que ESTRUTURALMENTE as coisas não se inverteram por aqui e a maioria dos brasileiros continua vulnerável economicamente a médio prazo, ainda mais diante de uma crise que, mais que econômica é sistêmica; e mais que sistêmica, é civilizatória. T inchaço das bolhas especulativas, sobretudo a bolha imobiliária (sobre isso ver como começou a crise em 2008 e a quebra do Lehman Brothers).
A questão é que esse “bom momento” do Brasil (isso é, desse bom momento do Capitalismo no Brasil) tem feito as pessoas perderem completamente o senso crítico. As camadas populares não enxergam a arapuca em que se enfiam ao se endividar a esse nível, não se incomodam com corrupção, nem com a devastação ambiental, nem com o aumento da violência do Estado contra os povos indígenas.

A luta dos povos indígenas e ribeirinhos do Xingu contra
Belo Monte é o exemplo mais gritante de mordaça; a maior
parte da militância do PT, que deveria ser a 1a a trabalhar
(a começar internamente) contra a absurda barragem não
tem participado da luta ao lado desses povos, para não
contrariar o interesse de Sarney e das corporações
mineradoras,uma vez que o PMDB está na vice presidência
 Além disso, boa parte da pequena parcela de brasileiros que sempre tiveram (e têm) interesse por assuntos políticos e militaram no passado por um mundo e país mais justo e livre, hoje, está cooptada ou amordaçada. Não me refiro só à elite sindical que conquistou cargos e prestígio, mas também a boa parte da militância petista que defende a todo custo (de maneira que lembra o fanatismo religioso) toda atitude ou postura do Governo (e base governista de modo geral), sem crítica, fazendo concessões morais e ideológicas que há menos de 10 anos eram impensáveis para esse grupo, que tinha um histórico de honradez, caráter e disposição para lutar pelo que é justo. Hoje, antigos socialistas antiimperialistas comemoram o sucesso do Capitalismo à brasileira e mais, adoram que estejamos nos tornando um novo império. Mas o custo de sermos agora Império (e provavelmente não o seremos por muito tempo) vai ser caríssimo e passa pela destruição irreparável de nossos recursos naturais por conta dessa “festa” de “bom momento” que não vai durar para sempre.

Americanos começam a acordar do transe e a reconhecer
que o Capitalismo industrial só leva à destruição de outros
povos e (mais cedo ou mais tarde) do próprio povo do
Império. Cidadão ocupam Wall Street há 13 dias pedindo
Democracia Direta (o que inclui o fim da ditaduta do
bipartidarismo) emudanças no sistema econômico

Em tudo estamos cada vez mais parecidos com os EUA há 10 anos, não só por ter agora nossos próprios assassinos escolares. Somos genocidas: basta ver a questão de Belo Monte. Promovemos violência mundo a fora: basta ver a repressão violentíssima das forças policiais na Bolívia contra os indígenas que protestaram contra a construção de uma rodovia passando pela terra deles e destruindo a floresta, rodovia essa financiada pelo BNDES, executada por uma empreiteira brasileira para ligar o Brasil a portos do pacífico. Ou então basta olhar a crescente insatisfação dos haitianos ante os abusos dos soldados da missão comandada pelo Brasil.
Enquanto americanos começam a acordar do transe capitalista, no melhor estilo Praça Tahrir, ocupam Wall Street há 13 dias, por reformas políticas rumo à democracia direta e por mudanças profundas no sistema econômico, o Brasil ambiciona ser a nova potência prepotente e copia até a cara de pau do Tio Sam de se autoproclamar “Voz da Democracia” (mesmo não tendo sequer um congresso representativo que discuta a coisas e ouça as pessoas). Tomemos cuidado: quanto maior a altura, maior a queda. E mais, se o novo século é do Brasil, podemos fazer melhor que eles fizeram e propor um outro modelo de civilização.
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análise da crescente insatisfação dos haitianos contra os abusos cometidos pelas tropas comandadas pelo Brasil