domingo, 13 de novembro de 2011

#OcupaSampa Questionamento à sanidade em lembranças recortadas

(Jornal do Povo 12/11/2011)
Ocupa Sampa atrai dezenas de crianças de rua. As "autoridades" paulistas e paulistanas permanecem omissas à falta de escola, saúde e familia dessa população e ainda por cima é conivente com o tráfico de drogas para que acontece há menos de 100 metros da Prefeitura. Os "indignados" tentam fazer o que podem, inclusive denunciar a venda de drogas a menores, mas a PM e a GCM só aparecem para reprimir manifestação política e impedir que pisemos na grama.


“A loucura é que é sinal de sanidade. Por que num mundo doente como esse, como é possível alguém ficar bem, continuar sua vida normalmente? Se acostumar a isso é que é doentio. Nesse sentido, a loucura é o estado normal do ser humano de nosso tempo", me tranquiliza Cleberson, um irmão de Ocupa Sampa, psicólogo e amigo. Lembro do Cazuza: “Eu vou pagar a conta do analista”. E eu paguei há um tempo e decidi só ouvi-los se fosse para ouvir alguém sincero, que não estivesse interessado no meu dinheiro nem em resolver-me como um caso, um robô para reparar e botar de volta na linha de produção. Coisas como “seja um bom trabalhador” ou “pare de fumar, tome drogas caras e sintéticas” não me parecem conselhos de amigo. “Continue ‘louco’”, sim.
“To indo”, me diz Alemão, que estava morando na rua, mais um cara cuja vida foi devastada pelo sistema e pelo crack. Parou uns dias de usar a pedra, teve uma recaída, sofreu com isso; depois, com a ajuda de umas meninas da ocupação, arranjou uma vaga gratuita numa clínica de reabilitação. Ele estava indo com as próprias pernas e um sorriso no rosto. Eu digo a ele o quanto torço, confio na capacidade dele e o quanto sentirei saudades. Uma vez, estava frio no Anhangabaú e eu começava a ficar doente. Alemão me deu suas luvas, mesmo sendo muito tendo em vista o pouco que tinha. Ele preferia ficar acordado a noite toda, então ficava junto à fogueira e prescindia de luvas, mas não abria mão de cuidar do sono noturno daqueles que também cuidavam dele durante o dia.
A Prefeitura e o Estado de São Paulo querem começar um programa de internação compulsória que mais lembra o fascismo, recolhendo à força moradores de rua e drogadictos para “limpar” antes que os gringos vejam a verdade na Copa do Mundo. Moradores de rua desaparecem muito frequentemente em São Paulo. Geralmente, a última vez que foram vistos estavam sendo incomodados por alguma força de repressão.
Loucura é que um dia eu fui dar aula no gramado central do Vale, que hoje é uma praça suja e seca, mas um dia foi Mata Atlântica e teve um rio no meio, que hoje corre cheio de merda, canalizado sob o cimento. “Aula de História R$ 0,00”, diz a placa que apoio numa árvore. Há tempos descobri que os garotos que pulam o muro da escola são mais interessantes e inteligentes que os que sequer pensam em fugir desses presídios chamados escolas convencionais. Descalço, estou em círculo com gente biodiversa espiritual, cultural e socialmente. Numa aula em que todos participam é bom ouvir o índio, o skatista, a cigana, o bêbado, o menino da periferia que sabe fazer rimas como gente grande, o lixeiro, o sociólogo, o estudante de Direito que tem mais amor à Justiça do que às leis. É proibido pisar na grama, por isso chega a Guarda Civil Metropolitana de São Paulo (GCM) com seus agentes armados e pisando pesado com botas militares.
Vão destruir o Xingu, aprovar mudanças suicidas no Código Florestal, e pisar na grama é que é crime ambiental. Tão proibido quanto plantar árvores, estender faixas, construir banheiros secos e ecológicos, acender fogueiras. Um punk pergunta “por quê?” e é ameaçado com spray de pimenta. Não podemos pintar “amarelinha” no chão e nos dizem para não dar alimento às crianças de rua que se aproximam do grupo acampado há quase um mês.
Denunciamos a infeliz que vende drogas às crianças e a GCM continua prevaricando. Na verdade, parece gostar que eles cheirem tíner e comecem a brigar no acampamento ou a roubar barracas para desestabilizar o movimento. O Estado, instrumento de poder do capitalismo, não quer que as acolhamos, não lhes oferece nada de dignidade, prevarica ante a situação das crianças, mas aparece para impedir que sentemos sob uma árvore para proteger a grama, que “é patrimônio público”, como justificam os GCMs. Diante disso, não tenho dúvidas de que insano é o sistema; insano é se conformar com o cotidiano, com crianças que jamais tiveram família nem fruta no pé usando drogas do lado da Prefeitura da cidade mais rica da América Latina.
Membros do Anonymous queimam revista Veja, que
manipula informação para fazer parecer que o movimento
contra todo o Sistema político e econômico é meramente
apenas contra o governo Dilma
Essa semana uma galera deu um baita trabalho construindo as estruturas para as telhas fotovoltaicas inventadas por Charles, o “Charlie Brown”, inventor e revolucionário. Na mesma semana aumentou o diálogo e o intercâmbio com as famílias das novas ocupações de prédios abandonados e com os universitários que querem a desmilitarização da sociedade. Os alunos da USP passaram em marcha sobre o Viaduto do Chá e aplaudiram o Ocupa Sampa aqui embaixo. Uma menina levanta o cartaz “Fora a PM do campus”. Eu grito: “Fora a USP do campus! Fora a PM do mundo”.
Não, não é fácil. Como sempre digo: não dá para fazer uma revolução europeia no Brasil. Na europa não há crack na boca de crianças de 6 anos e existem fontes com água limpa para as pessoas beberem. Lá não há tantas pessoas traumatizadas pela cadeia, nem pela violência da miséria.
Mesmo assim, há quem diga que o Brasil vai bem e é exemplo de democracia, que não há motivos para sonhar com revolução, nem querer mais participação das pessoas na vida do país, nem propor profundas mudanças culturais na maneira como as pessoas lidam umas com as outras e com a Terra e o local em que vivem.
Água cai do céu; comida nasce da terra; destruímos tudo isso para criar essa civilização de morte surreal e ainda nos achamos os seres mais espertos da natureza. Me desculpe, mas acho que natural e sano é mesmo se rebelar.


Aldeia rebelde em Sampabilônia

(Jornal do Povo 5/11/2011)
Sexta-feira, 3 de outubro de 2011, é o 21º dia de acampada. O Centro da maior cidade da América do Sul é cada vez mais nosso. O boicote da mídia hegemônica (que omite e/ou distorce) me dá nojo. As multidões que passam como zumbis de um lado para o outro sem perceber os absurdos do cotidiano me dão pena. Claro que aqui seria mais difícil. Não se faz uma revolução europeia na América do Sul. Aqui, onde sempre estivemos na bota do sistema, a maioria se acostumou com o peso e a sujeira dela. Tristemente aceita-se tudo com naturalidade. Tudo parece tão longe, tão distante. No Anhangabaú, não. Está tudo muito perto. “Tâmo junto e misturado”. Em volta da fogueira, tocando violão ou fazendo assembleia para definir os rumos do movimento.
O rapper Gog participa do Ocupa Sampa
Grafite. Malabares. Sabotagens poéticas. Meditação. Nossas armas são simples, mas têm vencido a Polícia Metropolitana, que parece não ter o que fazer a não ser nos azucrinar como criança chata. Viraram motivo de piada. Só rindo pra não morrer de raiva.
Como bem disse o p(r)o(f)eta Gill Scott-Heron: “A revolução não será televisionada”. Para piorar as coisas, não temos tantos computadores, paggers, celulares com internet e banda larga quanto gostaríamos. Por uma diferença simples, aqui não é a Europa. O acampamento cresce com sem-teto, estudantes, hippies, professores, punks, artistas, desempregados, intelectuais, camelôs despejados pelo Kassab, egressos, religiosos, idealistas em geral continuam a chegar. A cada dia fica mais claro não se trata de um protesto digital como muitos pensam. Não é só discussão de teoria ou preferências políticas. É sobre luta social. Mendigos, índios e a maioria da população brasileira não têm notebooks nem muito menos banda larga móvel. A limitação das comunicações atrasa o processo de integração com outros focos de resistência na cidade e com o mundo. Por isso, mesmo maior que as primeiras acampadas espanholas e estadunidenses, continuamos sendo ignorados por boa parte da população. É... Aqui o sistema é mais perverso e os mecanismos de controle do pensamento mais eficazes. Mas não desistimos, é tudo a seu tempo. Não dá para esconder uma coisa dessas por muito tempo.
População de rua adere cada vez mais ao Ocupa Sampa
É a realidade. Aqui é a rua. Tem a Força da Verdade (satyagraha). Estamos do lado da Prefeitura com a maior concentração de moradores de rua de São Paulo, com uma biblioteca, aulas abertas com intelectuais brasileiros, banheiro ecológico, cozinha comunitária, cinema sob o Viaduto do Chá, apresentações artísticas, rodas de conversa, atividades lúdicas, megafones, faixas. Como nos ignorar para sempre? Não vai passar tão cedo na TV nada de bom que sair do Anhangabaú ou da Cinelândia (Rio) ou de qualquer outra acampada. Mas é preciso resistir, mesmo que as doações de alimento começaram a diminuir quando a população da acampada começou a se tornar majoritariamente de pessoas que normalmente não têm mesmo comida e já moram na rua. Acho que hoje esses irmãos (assim que nos chamamos mutuamente) que vivem na rua, os últimos, os fudidos do sistema, já são quase 30% de nós. Enquanto isso, boa parte da molecada de classe média “revolucionária de sofá” que estava no início não aguentou o choque de realidade nem quis trabalhar para construir algo novo, já saiu fora. Por sorte, chegam reforços valorosos: ontem, por exemplo, chegou um cara da USP com um projeto de um gerador elétrico movido à pedalada para fazer com ferro velho, o que deve aumentar nossa capacidade de transmitir conteúdo pela web, já que mais computadores poderão ficar ligados.
Os militantes de partidos políticos que provavelmente pretendiam cooptar o movimento ou tentar direcioná-lo foram os primeiros a sair fora quando viram que todos eram de fato iguais e importantes. “Nossos sonhos não cabem nas suas urnas”, diz a faixa que resume que não queremos reforminhas de mentiras nem trocar os políticos, simplesmente não acreditamos mais no sistema que não nos representa ou sequer nos ouve. Então não há disputa. Todos somos indivíduos. Todos queremos o bem comum. Não há um poder interno em disputa, não há o que conquistar ou quem vencer nas assembleias: por isso os manobristas partidários saíram fora. Nosso processo deliberativo é um outro tipo de democracia em que todos buscam o bem comum. As minorias não são vencidas pelo voto, pois sempre que derrotados numa “votação” têm a chance de expor por que discordam dessa ou daquela proposta, ajudando a ver outros lados da questão, então a assembleia tenta achar uma solução que resolva os problemas apontados pelos “vencidos”, pois o objetivo é que todos vençam juntos. Essa postura é revolucionária: não ver quem pensa diferente como inimigo, mas como companheiro que colabora na busca da verdade. O fato de não haver classe social nem diferenciação na distribuição de trabalho nem de alimento nem de nada ajuda nisso. Na sociedade oficial é diferente, cria segregação para nos desunir. Os 99%, se divididos, não são 99%. Não fosse o Ocupa Sampa, que quer virar Ocupa Brasil no dia 11/11/11, não teria conhecido e adentrado o mundo da rua, dos invisibilizados, e continuaria admirando gente branca que adora teorizar sobre sociedade, mas na hora da rua não se mexe para mudá-la.


VIDEO
O professor Pardal xamânico do Acampa Sampa

Nenhum comentário:

Postar um comentário