Aos poucos, mas cada vez mais aceleradamente, o Viaduto do Chá vai se transformando. O decadente Centro de São Paulo vai ganhando vida novamente. É difícil imaginar aquele lugar séculos atrás, quando um rio passava por ali e o espírito das águas (Anhangabaú) vivia no fundo do vale. Penso no sangue indígena e negro derramado, nos operários que colocaram cada uma das pedras que pavimentam o vale. Tento imaginar aquele local lotado de gente de camisa amarela pedindo eleições diretas em 1984, quando eu ainda era uma criança e o Brasil não escondia ser um país ditatorial. Penso nos tantos casos de suicídio; o Viaduto do Chá sempre foi o local preferido dos desesperados que decidiram por fim à sua amarga existência. Penso que há bem pouco tempo atrás o viaduto, bem ao lado da Prefeitura construída pelo mesmo arquiteto de Mussolini, era um local onde sem-tetos se abrigavam da chuva até que forças policiais começaram a caçá-los. Alguns moradores de rua que se juntam ao acampamento pacifista revolucionário contam que à noite caminhões pipa os expulsou com jatos d'água em madrugada fria. Dona Cida conta como a mesma Guarda Civil Metropolitana destruiu sua banca de camelô e depois tentou colocar fogo nela viva enquanto dormia na rua.
Aulas públicas. Ocupa Sampa tem a universidade na Rua |
Mas há duas semanas as coisas começaram a mudar, quando indígenas, anarcopunks, artistas plásticos, professores, hackers, iogues, devotos de Krishna, padres, xeiques, sociólogos, músicos, advogados, estudantes, jornalistas e toda sorte de gente começou a chegar com suas barracas com o intuito de afrontar o sistema. Resistindo às ameaças da GCM e gangues neonazistas, ao frio da madrugada e outras adversidades, já temos biblioteca, coleta seletiva, horta (com espantalho e tudo), salão de cabeleireiro ao ar livre, um cineminha, uma cozinha equipada (capitaneada por chef argentino e outro pataxó), geração de energia. Um dia passamos o chapéu e cada fumante deu quantas moedinhas podia para comprar tabaco orgânico no famoso Mercadão. Enrolando nossos próprios cigarros, boicotamos o agronegócio, os agrotóxicos, as corporações estrangeiras, os impostos pagos a esse Estado que não nos representa; colocamos menos bitucas não-biodegradáveis no ambiente.
Professores da PUC, USP e Mackenzie já apareceram para ministrar aulas abertas ao público e transmitidas ao vivo pela internet. “Universo Cidade Livre” é como chamamos a nossa universidade, da qual todos, todos mesmo, podem participar.
Depois de passar um tempo na floresta você entende muita coisa sobre como nosso planeta era originalmente; sente muita coisa além da paz, do ar limpo, do silêncio da observação do equilíbrio com outros seres e com o ser maior que é a própria Terra. Chegar à babilônia paulistana é um choque, mas, como todo ser vivo, a Terra precisa de células de defesa que vão atuar bem no meio da ferida, da doença, do câncer, para transmutá-la. Já viu o planeta visto do espaço? As cidades de fato parecem cicatrizes podres no rosto da Mãe.
Só uma nova política, uma nova cultura, um novo sistema podem salvar as pessoas, pois quando a Terra está doente as pessoas ficam doentes. A contracultura é tão importante quanto os discursos e faixas pedindo democracia direta (em que cada pessoa tem o direito de participar e decidir tudo, não deixando essa tarefa concentrada nas mãos de um pequeno grupo: o dos políticos profissionais que defendem apenas os seus próprios interesses e os dos milionários que financiam suas campanhas).
Nos primeiros dias ninguém sabia que estávamos aqui e as pessoas tinham medo de andar por esse espaço durante a noite. Agora, jovens chegam com megafones, sonhos e violões para se divertir, fazer revolução e dormir entre moradores de rua. O caminhão de lixo passa à noite e os trabalhadores pendurados nos caminhões nos saúdam como se sentindo parte disso, coparticipante de indignação e esperança. As decisões são tomadas em assembleias e percebemos que, de fato, unidos podemos fazer as coisas bem melhor que os políticos.
Penso nas tribos indígenas e comunidades quilombolas que conheci nos últimos meses. A floresta está pronta para a resistência, do Xingu ao Cerrado, da Caatinga à Mata Atlântica, esses povos estão prontos para dizer “basta”, “não passarão”. Na zona rural, camponeses sem-terra começam a questionar lideranças que se aliam ao partido do governo que se aliou a latifundiários. Se a verdade vencer a covardia, a qualquer momento militantes da velha esquerda desistirão de mentir para si mesmos que os políticos os representam e estará definitivamente deflagrada a Revolução Brasileira. Pode não acontecer, mas se acontecer (e depende de cada um) o levante brasileiro será o mais bonito, carnavalizante e plural dentre todos os que já estão em andamento no mundo. Pequenas revoluções pessoais já estão em andamento: alguns moradores de rua já abandonaram seu vício de bebida e crack. E até eu, cientificista por tanto tempo, recuperei minha fé. À noite, na barraca, lembro do velho João “Não tenhais medo” Paulo II e peço: “Velho amigo, que amou tanto essa Terra e a juventude, que unia em nosso país grandes multidões unidas pela esperança fora da Copa do Mundo, faz um milagre aqui: ajude as acampadas de São Paulo, Rio, Olinda, BH, Campinas e Floripa a se espalharem, crescerem e inaugurarem o que você chamava de Civilização do Amor”.
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OCUPA SAMPA ENTREVISTA REPORTER DA GLOBO