Parte 1 - Acorrentaram Prometeu ou censuraram Dédalos e Ícaro?
Não tem nada a ver com patriotismo ingênuo. O leitor também sabe que eu não sou desses que ficam enaltecendo “heróis”, mas desse cara eu sou um fã: Santos Dumont. Um dos maiores gênios que a humanidade já teve. O cara voava, simples assim. Ia visitar amigos usando os aviões e dirigíveis que ele mesmo fazia, tomava um chá e voltava. Não se trata aqui de discutir mais uma vez se ele foi o primeiro ou não. O maior mérito dele, a meu ver, está não simplesmente na originalidade de suas máquinas geniais, mas em como ele lidou com a sua propriedade intelectual, sobretudo sobre seu mais perfeito invento.
Mas eu acho meio irônico que o homem tenha desistido de voar justamente no século em que ele aprendeu a voar.
A máquina criada por Clement Ader, de 1890 |
A literatura indiana milenar até fala das máquinas voadoras, as vimanas. Acredito que haja um pouco de otimismo somado a sensacionalismo na teoria de que elas de fato existiram. Mas aprendi a não chamar ninguém de “maluco”, pois muitas das melhores pessoas que conheci na vida assim são chamadas, bem como o foram as pessoas que sempre mudaram as coisas ao longo de nossa aventura sobre a Terra, que já dura milênios... Milênios esquecidos.
Bem, como historiador devo dizer que é improvável, no sentido radical da palavra “improvável”; no sentido radical da palavra “radical”. Vale salientar que “improvável” e “muitíssimo pouco possível, na minha opinião”, é diferente de impossível. Sei que talvez, daqui a milênios, se houver sobreviventes ou descendentes de nós que contem histórias, talvez as pessoas achem não muito provável que no nosso tempo nós fazíamos o que fazemos.
Acho, entretanto, que eles, os supostos herdeiros da Terra daqui a milênios, se chocariam com a maneira como nós vivemos e lidamos com esse saber, da mesma maneira que às vezes nos chocamos ao observar, por exemplo, o que entendemos ter sido civilização do antigo Egito. Essa coisa de escrita sagrada, reservada a sacerdotes. O saber censurado... Pesado isso, não?
Saberes secretos... A imensa maioria dos saberes secretos sempre foi secreta por puro egoísmo dos que se apropriaram dos saberes e querem manter estruturas de poder que os beneficiassem. Castas. Saber como poder, como forma de exercer opressão sobre outras pessoas, isso aconteceu pra caramba ao longo da aventura humana na Terra (escrita ou não) e nunca foi bom pra gente, manos humanos... E nem para outros seres... Bem, talvez para as baratas.
Mas acho interessante que tenham adolescentes sonhando com isso e compartilhando na internet desenhos e textos (antigos e novos) seus sobre vimanas. Acho que se não conseguirem fazer o que acreditam que os indianos faziam de verdade (máquinas circulares voadoras), pelo menos surgirão bons modelos de motores magnéticos caseiros (excelente alternativa potencial de autonomia, limpeza e economia energética para várias tarefas domésticas ou não). A novidade maior sobretudo está em como se está construindo (e reconstruído) o conhecimento sobre essas coisas de voar sobre energia magnética. Tudo colaborativo e compartilhado, pra quem quiser.
Se não voarem, baterão vitaminas saudáveis ou até farão computadores funcionar sem pagar conta de luz.
Levanta a mão quem sabe fazer um computador! Levanta a mão quem sabe emitir imagem, som e interpretação do mundo e pode falar em um altar retangular em cada lar até calar tudo que destoe da mera repetição! Levanta a mão quem pode voar para onde quiser!
Há algo errado com a maneira como a nossa geração está produzindo e distribuindo conhecimento. Quando domesticamos (do sentido radical e não-violento da palavra domesticar), o fogo não foi pra todo mundo? O fogo foi pra todo mundo assim como o frio e a escuridão eram para todo mundo. Nossos bandos não teriam sobrevivido a certos perrengues (inclusive glaciais) se isso fosse diferente.
É triste que no tempo do touchscreen haja muitos homo sapiens que não sapiens fazer uma fogueira, que não se apague nem incendeie tudo, para se salvar do frio se um dia precisarem.
Ainda bem que de tempos em tempos há certos ventos. Que limpam nuvens escuras e facilitam a decolagem, além de, para nossa alegria, avivar as brasas das fogueiras. Ventos estes que trazem junto sonhos antigos e a antiga paixão pela beleza do céu.
Os gregos também desejaram desobedecer a gravíssima lei da gravidade e criaram até o mito de Ícaro, que se tornou o símbolo desse antigo sonho humano. Os chineses antigos, loucos para descobrir maneiras de voar, fizeram pipas gigantes e chegaram a fazer voos tripulados com condenados e prisioneiros como cobaias, que acabavam na maioria das vezes se espatifando no chão; a intenção era conseguir criar uma maneira de observar os exércitos inimigos lá do alto e usar a tecnologia para a arte da guerra.
Planta do Avion, do Exército Francês. Clique para ampliar |
E foi precisamente para a guerra que o “Avion”, a máquina mais pesada que o ar, voou 50 metros à altura de 20 centímetros. Foi inventado por Clement Ader e decolou em 1890. Seu projeto sempre foi financiado pelas Forças Armadas. O resultado dele, quando terminasse, seria de propriedade do Exército francês.
Mas nem o Avion I, nem o II, nem o III corresponderam às expectativas. A coisa até voava, cada vez um pouquinho mais. Até decolava por meios próprios, mas era instável e incontrolável. Não dava para fazer uma curva sem se esborrachar. Mas, dependendo do que se chama de voar, ele voou. Dependendo do que se chama de “avião”, ele inventou o avião, pois, no sentido radical da palavra, foi ele que inventou essa palavra. Mas só é reconhecido assim por franceses.
(Continua)
Parte 2 - Nem por governo, nem por dinheiro. Apenas voar
O Avion de Clement Ader, no século XIX, foi um experimento secreto do Exército francês que não deu muito certo. Só depois de muito tempo o mundo soube do voo (ou “suposto voo”?) a incríveis 20 centímetros de altura que teria ocorrido em 1890. Oficialmente o Avion de Ader não serviu para o Exército porque não dava para controlar e porque não voava muito alto. Mas há quem duvide que ele sequer tenha saído do chão, já que não há registros de imagens nem testemunhas que não sejam ligadas ao Exército francês, que tinha óbvios interesses na questão do pioneirismo.
O Flyer, criado pelos irmão Wright, voou em 1909. Mas seus criadores e financiadores afirmavam que o primeiro voo ocorreu em 1903 |
Testemunhas tiveram os irmãos Orville e Wilbur Wright, estadunidenses engenhosos, donos de uma oficina de bicicleta, quando fizeram sua engenhoca chamada Flyer deslizar no ar. Voou? Depende... O que é voar? Uma flecha voa? Ela se move suspensa no ar, não se move? Se isso bastar, os Wright voaram, mas, antes deles, qualquer um que fosse arremessado por uma catapulta. Pois assim decolou o Flyer em 17 de dezembro de 1903, impulsionado por uma espécie de estilingue, de modo que o aeroplano (airplane), como chamavam o invento, só podia decolar de lugares específicos e precisava ser resgatado dependendo de onde pousasse.
Quem eram as testemunhas? O presidente do banco da cidade e alguns funcionários públicos. Rá! Mais uma vez não há registro do voo. Existe uma série de interesses financeiros por trás dessa patente. Logo, como historiador, devo lançar sobre o Flyer o mesmo olhar crítico (cético?) com o qual eu olho para as vimanas indianas. De omnibus dubitandum. Vimanas há sete mil anos é algo improvável. Não há provas do voo dos irmãos Wright. Nada é impossível. Nada pessoal... É que no presidente do banco não dá pra confiar.
Os americanos chamam avião de “airplane” e foram os Wright que inventaram de chamar assim as aladas máquinas voadoras mais pesadas que o ar. Então eles inventaram o “airplane”, mesmo que o deles não decolasse?
Antes de o Flyer decolar, Santos Dumont, do alto de seu 1,62 metro de altura, já era uma celebridade mundial, uma espécie de herói na França e mito no Brasil. Era sempre visto nos céus de Paris nalguma de suas invenções.
Não era para nenhum Exército. Não era para nenhuma empresa. Ele queria voar... E dar isso à humanidade. Sozinho, lá no céu, nos balões que ele mesmo projetava, ele meditava sobre a humanidade. Ele via o mundo de outro ângulo.
Inventava coisas e fazia ele mesmo. Foi para a Europa estudar, mas mais ensinou do que aprendeu. Sabia aproveitar a grana que tinha. Era rico, mas não esbanjava. Tinha hábitos simples e manias extravagantes.
Para fazer balões mais leves, Resolveu usar bambu e seda em vez de madeira e panos pesados. Inventou o relógio de pulso, amarrando um relógio de bolso com uma correia, para poder olhar as horas e o cronômetro com mais facilidade lá de cima, sem ter que largar o controle do dirigível.
Planta do Flyer, clique para ampliar |
Foi ele quem inventou a porta de correr, hoje tão comum. É que ele tinha acabado de inventar o hangar (galpão grande e alto para guardar aeronaves), pois queria guardar seus dirigíveis sem precisar esvaziá-los, já que o gás hidrogênio era muito caro. Portas comuns naquele tamanho seriam muito pesadas para abrir. Mais tarde, sabendo que hidrogênio é fácil de conseguir se trabalhada corretamente a reação do ácido sulfúrico raspa de ferro, veio a montar sua própria planta de produção de hidrogênio.
Mas ele queria mais. Compartilhava o sonho de Da Vinci e Ícaro. Queria voar em algo mais pesado que o ar. Como as aves fazem ou como as vimanas supostamente faziam.
Desenhar. Experimentar. Errar. Tentar de novo. Estudar trabalhos de outras grandes mentes. Ir a bibliotecas. Conversar. Observar a natureza. Meditar. Meditar. Meditar. Escutar o silêncio. Fazer miniaturas. Testar. Desenhar. Trocar ideia. Cair. Levantar. Remendar. Redesenhar. Quase se explodir. Consertar. Arriscar mais uma vez.
Conseguir.
Em 1906, esse pesquisador independente e popular figura, diante de câmeras e testemunhas, decola com seu 14 Bis. Seda e bambu e um motor à explosão. Imitando o voo dos patos selvagens que Alberto contemplava, o 14 Bis tinha as asas atrás e um longo bico à frente. Ao contrário do Avion, era controlável. Ao contrário do Flyer, não precisava de estilingue gigante.
Mas essa ainda não foi a obra prima de Santos Dumont. Poucos anos mais tarde ele construiria algo ainda mais especial. E seu sonho não era só que ele próprio voasse: ele queria mudar o mundo com a aviação.
Parte 3 - Pode ser muito difícil, mas quem diz “impossível” é que não voa mesmo
Onde estão os gênios de nossa época?
Gênios das artes encontro nas ruas. Ou então nos fins de semana, quando eles não têm que apertar parafusos nem vender celulares. Ou, ainda, alguns esqueceram-se que eram gênios e venderam sua genialidade para a indústria cultural, e deixarão de produzir coisas eternas para o espírito humano e/ou importantes para a presente época. Uns no anonimato, outros fora dele porque abriram mão de seu maior bem.
Mas e os gênios da ciência? Onde estão nossos Da Vincis? Nossos Santos Dumonts? Estão todos alugados?
Cadê o menino que queria ser inventor? É inspetor de uma fábrica de motores de carro.
Santos Dumont voa numa de suas Demoiselle, o ágil avião pessoal que deu origem ao desenho dos aviões modernos e cuja patente ele doou para toda a humanidade |
Cadê a menina apaixonada por química e biologia? Pelos animaizinhos e o segredo das substancias da vida? Está testando cosméticos nos olhos de coelhos.
Ele poderia ter nos libertado da dependência dos combustíveis fósseis. Ela podia ter descoberto na natureza uma molécula plantável que salvasse vidas de doenças terríveis.
Nossos filósofos vendem trufas de chocolate ou DVDs piratas. Nossos astrônomos passaram em concursos públicos e não podem observar os corpos celestes por que têm que acordar cedo.
Algumas pessoas, que eram verdadeiros Pessoas, foram internadas ou pularam da ponte. Outras tomaram Ritalina desde a infância e outras drogas legalizadas recomendadas e impostas e hoje escrevem jingles para vereadores e estão superfelizes com seus novos phones, que são mais smart do que eles próprios.
Para que serve o conhecimento deles? Para que serve o conhecimento de cada um? Ou melhor seria perguntar: “A quem serve seu conhecimento, talento e todo o seu potencial humano, criativo, realizador?”.
Será que o trabalho, o esforço e a dedicação de cada dia que o corpo e a mente do humano fazem estão harmonizados com aquilo que eles desejam e sonham lá no fundo do coração?
Por que penso que talvez não existam gênios? Talvez a coisa esteja no coração. Quanto seu coração se rende para que permitas que seu cérebro seja amordaçado? A diferença é que uns se deixam idiotizar mais, outros menos. Mas, antes, uns vendem seus corações, por medo ou desejo implantado.
A quem estão servindo as universidades públicas hoje? Estão gerando conhecimento para a humanidade, para o país, para as pessoas? Ou será que cada vez é mais comum ver todo o equipamento público, verbas de pesquisa inclusive, cada vez mais produzindo patentes para setores privados? Gera-se dinheiro para poucos e soluções científicas para quem pode pagar.
A questão que se coloca hoje é "de quem é o conhecimento"? E, por conseguinte, é inevitável que se pergunte: De quem é tudo?
A roda, o motor, o tecido oriental impermeabilizado com cera natural, o tratamento do bambu, o sonho de voar, o fogo, o ar, as leis da física e as brechas na lei, de quem são? Fizemos juntos. Nossos ancestrais. Talvez nossos ancestrais tenham sido ajudados pelo conhecimento sublime do design das aves, saber e obra perfeitas por trás da qual também se deu a formação da nossa inquietude, inteligência e sonhos. Por isso Santos Dumont sabia que não tinha inventado o avião sozinho. Inventou com os ancestrais e com quem pesquisou antes. Inventou com quem domesticou o fogo. Inventou com a chinesa que há milhares de anos desenrolou pela primeira Vez, por curiosidade, o casulo do bicho da seda que caiu na sua xícara de chá... E viu que tudo era bom. Foi com todos que observaram as aves antes dele.
Todo conhecimento é colaborativo, porque estamos acumulando juntos já há alguns milhares de anos, colaborando e atrapalhando umas gerações às outras. Todo conhecimento é de todos. Não interessa se dois anos depois de Santos Dumont decolar, voar e pousar os Wright patentearam o avião e disseram ter voado três anos antes dele. Não interessa o que diz o Exército francês.
Depois do desengonçado, mas pioneiro, voo do 14Bis, que tinha o “rabo pra frente”, Dumont continuou inventando. Até chegar à Demoiselle, carinhosamente apelidada de “A libélula”. Esse pequeno avião foi o melhor e mais ágil de sua época. Versátil, portátil. Ele sonhava com um mundo em que todas as pessoas poderiam ter seus aviõezinhos, poderiam até fazer o próprio. E não patenteou. Ele doou os direitos sobre a Libélula para a humanidade. O desenho dela inspirou os aviões pessoais que vieram depois.
Planta da Libélula, clique para ampliar |
Na época, várias oficinas começaram a fazer Libélulas na França. Mas veio também a Guerra Mundial e, em vez de dar liberdade e abolir as fronteiras e diferenças, como sonhou Alberto, as máquinas voadoras foram usadas por seres humanos para matar semelhantes.
Em 1932, no Guarujá, interior de São Paulo, durante a Revolução Constitucionalista, um dos maiores gênios da história da humanidade viu aviões do Exército Brasileiro indo bombardear cidades paulistas. Pelo jeito, ele se suicidou, mas há quem negue isso até hoje e dizem que foi o coração.
Vieram outras guerras. Veio a monopolização do ar e do conhecimento sobre voar. Bem como de todo conhecimento humano, roubado pelo capitalismo, que saiu triunfante do Século XX.
Mesmo que o Século XXI tenha começado com aviões sendo jogados em torres e aviões jogando bombas em aldeias afegãs, tenho motivos para acreditar que o espírito humano está vivo. Renasce e voa, tipo fênix. Afinal, tem meninos que ainda sonham conversando ao redor do mundo e somando conhecimento sobre fazer “discos voadores”. Eu não duvido que um dia (em meses ou décadas) uma esquadrilha independente levante voo. Não sei qual a relação disso com o tempo, mas sei que a planta ainda sabe crescer, a larva ainda sabe fiar e as crianças ainda são curiosas e estão perdendo o preconceito de pedir ajuda para o conhecimento do passado. Já as vejo bombardeando a Terra... Com sementes, para restaurar tudo.