Esse artigo sobre o rastafarianismo foi publicado na página B-7 num domingo de 2006 quando eu era editor do noticiário internacional do Caderno B do jornal Comercio da Franca, e viria a dar origem à série Viagem no Tempo. Posteriormente foi atualizado e republicado no Jornal do Povo (RS). Achei que merecia ser uma das primeiras postagens do blog, pois foi de certa forma "o começo de tudo".
Leandro Cruz
Lar de Usain Bolt, o homem mais rápido da história, a ilha da Jamaica foi por muito tempo um simples esconderijo de sanguinários piratas do Caribe. Até que um dia os ingleses resolveram colonizá-la para plantar cana-de-açúcar, pois viram que os portugueses (no Brasil) e os holandeses (nas Antilhas) estavam ganhando a maior grana com isso.
A tribo nativa (os arauaques) foi dizimada pelos ingleses e aqueles que sobraram se negaram a se submeter aos invasores, preferindo se jogar das encostas (como lemingues). Para “pegar no pesado” os colonizadores trouxeram amontoados, em nada confortáveis navios, negros de diferentes partes da África. Sem uma língua comum, sem escrita para preservar sua história, os negros sofreram um bocado.
Os ingleses (protestantes da Igreja Anglicana) não se preocuparam nem um pouco em difundir o cristianismo entre os povos sob seu domínio, mas, ao contrário, o usavam de maneira a justificar a dominação.
Assim, ao mesmo tempo em que não se pronuncia o Nome em vão, também se chama o Inominável por um apelido carinhoso, monossilábico, igual costumamos usar com nossos companheiros mais íntimos.
A crença ganhou força quando a mensagem de um líder pelos direitos civis dos negros começou a romper as barreiras do Harlem (bairro negro de Nova Iorque) e chegou à Jamaica. Marcus Garvey, de origem jamaicana, pregava a emancipação dos negros, a justiça social, a liberdade. Ele achava que todos os negros deviam se unir contra a opressão e desejava que fosse fundada uma “África para os africanos”. Seu movimento civil conseguiu fazer muitos adeptos em mais de 25 países. Hoje, Garvey é considerado nos Estados Unidos um precursor de Malcolm X e Martin Luther King, mas na Jamaica ele foi considerado um profeta.
Garvey teria dito em 1927: “Olhem para a África. Quando um rei for coroado, a libertação estará próxima”. O fato é que Ras Tafari acabou sendo elevado ao trono da Etiópia, tomando para si o nome de Hailé Selassié. Os seguidores daquele embrião de religião jamaicana acabaram por crer que Ras era o messias salvador e que a libertação de todo mal e o retorno à África se aproximavam.
Selassié não dava a mínima para a divinização que os jamaicanos atribuíam a ele. Mas a esperança de salvação deu muita força ao movimento que acabou adotando o nome Rastafári. Boatos de que o monarca etíope estava doando lotes e mais lotes de terras na Etiópia se espalhavam pela Jamaica. Os adeptos da religião acreditavam que logo aportariam barcos que os levariam embora da Babilônia para a “terra prometida”. Perseguidos nas favelas de Kingston, alguns rastas (como ficaram conhecidos os fiéis da religião) se refugiaram no interior do país e começaram a fazer novos adeptos para voltarem todos para a África. O líder deles foi Leonard Howell, que fundou a comunidade de Pinnacle em um lugar isolado da ilha, onde o rastafarianismo ganhou corpo. Lá os quase mil moradores cultivavam sua comida vegetariana e também o seu “alimento espiritual”, a erva que os jamaicanos chamam de kaya (nome científico: Cannabis sativa).
A Polícia destruiu Pinnacle em 1941 porque o uso da kaya era ilegal. Essa planta, usada em cultos religiosos na Índia há milhares de anos, tinha função ritualística no rastafarianismo, mas a Polícia não entendeu. Contudo, alguns anos depois, Pinnacle renasceu.
BOB MARLEY - Selassié foi deposto pelos militares em 1974 e morreu um ano depois sem ter cumprido a promessa que ele não fez. Mas o rastafarianismo persistiu e a crença só cresceu nos anos subseqüentes, pois o cantor Robert Nesta Marley (o Bob Marley, considerado um profeta do rastafarianismo), seguido por vários outros, a difundiu através de suas músicas. Aconteceu uma nova releitura das escrituras e de tudo o mais. Agora, a fé que ganhava o planeta via no mundo moderno, tomado pelo egoísmo, injustiça, desigualdade, violência, desonestidade e opressão, a verdadeira Babilônia, não mais restrita apenas à Jamaica. As novas gerações de rastas não esperam barcos aportarem para as levarem para uma África idealizada, mas crêem que um mundo melhor há de vir. Não vai ser fácil, como não foi para os judeus do Antigo Testamento, mas com luta e fé em Jah, “everything is going to be alright” (tudo vai dar certo).
Hoje o rastafarianismo tem muitos adeptos nos EUA, na Inglaterra, no Maranhão e em vários outros lugares onde os jovens, na maioria negros, sentem que a sociedade, a “Babilônia”, não os aceita. Muitos adotam ideais rastas, sem necessariamente praticar a religião (podendo até ter outra fé), por simplesmente acreditar que há muita coisa errada neste mundo e desejar ver o homem liberto da degradação “babilônica”.